Aquele olhar
Chegou.
Vestia-se de modo simplório. Sua habitual calça jeans, blusa de manga azul e all star. Era seu uniforme diário.
Pensou nas coisas que deveria fazer, pensou até em se alegrar com algumas lembranças, uns sorrisos dispersos, abertos. Mas lembrou-se da louça, ora a louça! Sua realidade dura demais não a dava muito tempo para relembrar.
Trocou de roupa. Com seu short curto, ligou o rádio no último volume na tentativa de afastar maus pensamentos – música renova as energias – dizia sempre, ora para os outros, ora para si mesma. Louça lavada, hora de lipar o banheiro ouvindo Pagu, era um ritual.
Comida no fogo, era ágil. Parecia que em seguida tiraria o pai da forca, ou que tinha 3 crianças para cuidar. Mas não tinha, não tinha ninguém para cuidar, só si mesma, e ninguém que a cuidasse.
Não era sozinha, mas era o que parecia a maior parte do tempo. Após terminar seus primeiros afazeres, pensou em seguir com os próximos. Precisava estudar. Então reiniciou seu ritual diário. Forrou o chão, e o encheu de travesseiros, esparramou os livros. Pensou no que deveria estudar. Biologia. Embora o que precisasse no momento era de uma boa literatura. Clarice, Drummond? Qualquer coisa a céculas, teorias e relações. Sua vida andava com relações desarmônicas por demasiado, canibalismo diário de si mesma.
Deitou -se em meio aos livros com desânimo. Pensou que as coisas poderiam ser um pouco diferentes ou pelo menos mais parecidas com antes, fechou os olhos e começou a relembrar...
Era frio, verde. Ela estava linda, com poucas vezes. Vestia uma blusa preta, meia calça e um sobretudo que acentuava sua silhueta longa e esquia mas que a deixava com um ar europeu que todos a elogiam, mal percebia seu sorriso de canto de boca ao ouvir que parecia uma francesa. Foi um tarde linda, e ela sabia disso.
Sorria de novo, agora um pouco mais triste, mas afinal, nem fazia tanto tempo assim. Pensou no quanto uma pessoa muda, mesmo em pouco tempo cronológico, é uma espécie de tempo de aura, de renovação de energia, mas não queria pensar muito em tempo, não no tempo que tinha passado, contentou-se em relembrar.
Teleportou-se exatamente para o momento em que alguém arrumava seu cachecol de um jeito diferente e dizia o quanto a cor de seu cabelo combinava com o mel de seus olhos. Lojas, sorrisos, gestos, conversas, naquele momento ela tinha esquecido-se de tudo, tudo, tudo. E tudo era muito. Foi quando chegou finalmente, ao momento em que mais que sua mente seu coração queriam reviver e (re)sentir, (tre) sentir. O olhar.
Não fora sempre observadora de olhares, por diversas vezes os ignorava, mas com o tempo como tudo que muda, seus sentimentos em relação à olhares também mudou.
Um olhar tocava-a tão profundo como uma música, um beijo, uma sensação, transpassava um toque físico, um sorriso, porque os lábios mentem, tem gente que sorri bonito mesmo triste, mas os olhos não, esses não sabem mentir pois são o reflexo da alma, e a alma para ela era tudo, e se tudo era muito, a alma era muito mais.
Olhou mesmo de olhos fechados aqueles olhos de novo, e não hesitou em sorrir novamente.
Eram olhos ávidos, olhando a multidão, até encontrar os seus, e então perder-se um dentro do outro, por instantes, por milésimos de segundo, por... E sentiu de novo seu corpo estremecer, um frio diferente, frio bom.
Se existe destino a culpa foi exatamente dele, porque só a ele caberia se encarregar de criar a cena de reencontro ente uma amiga e ela ao lado do seu-garoto-de-olhos-tocantes.
Cumprida as formalidades, foi a ele que seus olhos teimaram em procurar, localizar, e foi meio descrente que ela olhou para o lado, e lá estava ele, olhando-a de frente, profundo.
Foi dele um dos poucos olhares que a acanharam, ora não fazia muito seu estilo acanhar-se, mas ele era diferente, olhava bonito. E foi após um vulto de um pessoa passando em sua frente, entre vozes conhecidas que ela percebeu, não eram só os olhos, ele era lindo. Lindo com poucos, portador de uma beleza que hipnotiza, daquelas em que se olha primeiro os olhos e perde-se sei lá quanto tempo admirando-os, sem perceber, sem se preocupar com o que há em volta, cor, roupa, cabelo, ou qualquer outra coisa, é só O olhar, e se for recíproco, não necessita-se de mais nada, de contar, de lembrar, só de sentir. É coisa de alma.
- Sabe com é isso?
- Acho que agora sei.
- Ah então Ana, foi meio que isso, eram umas luzes azuis fluorescentes.
Foi então que Ana percebeu que estavam falando de luzes mas não das mesmas luzes. A Luz que refletia no rosto de Ana era diferente de qualquer luz fluorescente existente. Seus olhos já não a obedeciam mais, só queria saber de procurar os outros olhos e descobrir o que eles tinham, qual era o segredo, a história, os medos, as verdades que se escondiam atrás das córneas e da hereditariedade.
E foi pensando no segredo que sorriu, e que viu sorrir para ela outra boca. Esquivou-se. Estaria dando bandeira? Mas e daí . Seus olhos precisavam daquele momento pra lembrar-se quando os problemas diários a atormentassem. Só queria olhá-los até quando pudesse, até que se perdessem.
- O que você tanto olha?
- Olhos.
-Como? (e indagou como se entendesse o que Ana havia falando anteriormente).
E foi entre não explicações, que ele a olhou pela penúltima vez e sorriu de canto de boca, ela atônita só sabia olhar, nem sorrir, por que se sorrisse talvez mentisse um pouco, não conseguia nem ser mais cordial, só olhar, olhar e sentir, e foi assim que ele ia afastando-se e ela sentindo a falta, a distância, a perda. Antes de dobrar a esquina ele a olhou pela última vez.
- Você está estranha hoje.
- Acho que preciso de roupas novas.
Ao abrir os olhos sorriu mais uma vez, olhou para os livros e para sua roupa que em nada lembrava a tarde mágica que vivera. Acordada, lúcida de suas lembranças, sabia que tinha que fazer algo em relação à sua vida depois de pensar em tudo que um dia a fez tão feliz como simples fleches que a davam o luxo de fugir de seu cárcere- cotidiano .
Foi limpar o banheiro.