Tema: Missa do Galo
Autor: Joaquim Maria Machado de Assis
Tarefa: Mudança de foco narrativo
Responsável: Romeu Fagundes
Nota explicativa: Este conto é um dos clássicos de Machado de Assis. No original, o narrador é um jovem de 17 anos que para fins de estudo se desloca para a cidade grande e se aloja na casa de um parente distante. O tempo da narrativa abrange o período em que o jovem espera um amigo vizinho que o acompanharia à Missa do Galo; no intervalo da espera, o narrador mantém um diálogo com a dona da casa. Machado de Assis dá curso à sua costumeira argúcia, picardia, ironia e veladas insinuações. Neste exercício, muda-se o foco narrativo do jovem pensionista para a senhora dona da casa. Aqui, não é o homem que conta a história; é a mulher. Mantém-se o texto original, inclusive com as expressões de época.
Nunca pude esquecer o que me ocorreu durante a estranha conversação que tive com um jovem, contava eu trinta, ele dezessete. Era noite de natal. Eu me encontrava só; mas não lamentando muito o fato do Meneses - este, o nome de meu marido - obrigar-se a passar a noite fora. Meneses e seus compromissos !
O jovem hospedara-se em minha casa porque era primo da falecida primeira mulher de meu marido. Eu e minha mãe o acolhemos da melhor forma possível quando veio de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Era do tipo tranqüilo, formal, discreto, ingênuo, vivendo com e para seus livros, poucas relações, alguns passeios. Nossa família pequena, o Meneses, eu, mamãe e duas escravas. Costumes velhos. As dez horas da noite toda a gente nos quartos; as dez e meia a casa dormia. Lembro alguns incidentes divertidos: o Nogueira (este, o nome dele)_ nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez ouvindo dizer a Meneses que ia ao teatro, pediu-lhe que o levasse consigo. Nessas ocasiões, ríamos da ingenuidade do pobre; o Meneses não respondia, vestia-se, saia, e só retornava na manhã seguinte. Mais tarde é que o rapaz deu-se conta de que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Eu padeci, a princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignei-me, acostumei-me, e acabei aparentando que considerava tudo muito direito. "Conceição, um santinha...", dizia minha avó. Talvez tivesse razão...a Conceição! chamavam-me a "santa", e eu fazia jus ao título, tão facilmente parecia suportar os esquecimentos do marido. Em verdade, sempre tive um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos.
Casei-me com um cartório; no centro da corte, um bem nutrido cartório. E o escrevente juramentado de meu marido, insinuava-se:
- Senhora Dona Conceição, Vossa Mercê dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deu me perdoe se a julgo mal. Tudo em você é atenuado e passivo.
Mentira: não dava para maometana; quase dei para ele, o servente Juramentado. O jovem de Mangaratiba fechou o caminho. Tudo montado, quando o primo distante passou a figurar como eunuco sem o saber.
Assom eu continuei desempenhando meu papel de mediana: nem bonita, nem feia; simpática. Jamais falei mal de alguém, perdoava tudo. Para todos os efeitos, eu - Conceição - incapaz de odiar e, quem sabe, talvez até não soubesse amar...
Uma forma de me tornar desejável sem representar nenhum risco. O Escrevente entendeu; as circunstâncias foram desfavoráveis. Restava-me o priminho distante, na flor de seus dezessete anos. Entenderíamo-nos?
Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. O jovem Nogueira já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas ficou até o natal para ver a missa do galo na Corte. A família recolheu-se à hora do costume; o priminho meteu-se na sala da frente, vestido e pronto. Inteligente: dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, Nogueira levaria a outra, a terceira ficaria em casa.
- Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? - perguntou minha mãe ao jovem.
- Leio, D. Inácia.
Escutei o que ele falava e senti-me toda arrepiada. Imaginei o cenário: a mesa redonda, quatro cadeiras, o canapé. O menino, magro, miúdo, pincenê desnecessário, ar intelectual afetado, lendo sob a luz de um candeeiro de querosene. Ele devia estar entre os "Três Mosqueteiros", cavalgando o corcel de DÁrtagnan. E ( O Meneses tinha escondido alguns picantes, "Fanny Hill", por exemplo - mas como passar-lhe? Impossível. Seria ótimo para preparar o ambiente.) Maldito Meneses! Nunca me deu um segundo sequer de prazer físico; um macho pífio; que será que a outra mulher havia encontrado naquele anão gorducho? Com certeza o mesmo que eu: segurança e conforto material.
Mas, deixemos para lá o Meneses.
Se há uma qualidade que possuo e cultivo é a paciência. Detesto inventar frases. Contudo, para mim a paciência é a mãe dileta da fantasia viável, do prazer refinado. E quando me encontram paciente, não sabem que estou preenchendo com sonhos os vazios de minha vida. Assim, eu, pacientemente, sonhava com o jovem miudinho enquanto acariciava a idéia de derrubá-lo do cavalo de D'Artagnan. (E se possível, substituir o nobre eqüino).
Ouvi bater onze horas. Conferi a praça de guerra: todos dormiam. Minha arma estava ensarilhada: minhas fantasias me deixaram ao ponto. Dirigi-me à sala de visitas; não me encontrava nervosa mas estava um pouco excitada. Já disse não me abalo por qualquer coisa; mas não era qualquer coisa, era um jovem e ingênuo mancebo de dezessete anos versus mulher de trinta faminta. Pus meu roupão branco usado para o banho, deixei-o mal apanhado na cintura e - que o Senhor o fizesse perceber - dispensei a camisola de dormir. Que alívio, deu-me a impressão que esperava por mim.
- Ainda não foi - perguntei-lhe.
- Não fui: parece que ainda não é meia-noite.
- Que paciência!
Senti-me um tanto perdida: a Amazonas conquistadora, a Cleópatra suburbana, a devassa cortesã de minhas fantasias recolheram-se sob o abrigo da Conceição pudica e intocável. A causa: atrás do pincenê, o mancebo não escondia olhos lúbricos não; ali estava apenas um menino miúdo viajando discretamente os olhos curiosos pelo meu corpo. Entrei na sala arrastando propositadamente as chinelinhas de alcova - queria chamar a atenção para a circunstância. Adotei um ar de visão romântica, de sonho que havia dado certo na minha fantasia. Da mesma forma que no sonho ele me olhou demoradamente mas um olhar de análise e não de gula. Sentei-me na cadeira que ficava defronte a ele, perto do canapé. Ouvi quando me perguntou se ele com algum barulho me havia acordado. Respondi com presteza:
- Não! Qual! Acordei por acordar.
Fitou-me um pouco e, estou certa, duvidou da afirmativa. Renovou-se-me a chama e a esperança. Abri bem os olhos e procurei mostrar-me esperta e quase suplicante. Senti um laivo de perspicácia, de lucidez. Nada. Simples estrela cadente num céu carregado de desejos. Meu céu. Minha fantasia periclitava se é que não fenecia de vez. Com certeza, o ingênuo rapaz queria muito o que eu lhe ofertava quase abertamente; não fazia o que devia porque creditava minha oferta a um rasgo de bondade que não deveria ser mal interpretado. Bolas! Eu me fazia de boazinha e... lá se ia minha fantasia, Tome-me senhor Nogueira. Carregue-me com sua juventude ao mundo dos sonhos. Um momento só nosso, Senhor Nogueira. Um dia, lembrar-se-á de uma pobre velha que lhe ofereceu carinho e ternura como presente de natal...
- Mas a hora já deve estar próxima - disse-me ele.
- Que paciência a sua de esperar acordado enquanto o vizinho dorme. E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu.
- Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo.
- Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos "Mosqueteiros".
- Justamente, é muito bonito.
- Gosta de romances?
- Gosto.
- Já leu a "Moreninha"?
- Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.
- Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido?
Começou a dizer-me o nome de alguma. Empostava a voz, embora procurasse falar baixo. Comecei a desnudá-lo lentamente com os olhos. Para não chamar atenção ou para lhe chamar mais atenção procurei escutá-lo com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio cerradas. Quando cheguei ao calção - costumava vestir calções de brim claro - fixei-me encantada. Secaram-me os lábios, formigava-me o corpo, lambi-me os beiços descaradamente e também por necessidade. Quando acabou de falar, estávamos nus: eu esperava que ele me possuísse sobre o canapé. Embalde, tudo embalde, nos dois mundos: o de minha imaginação e o real. Ficamos assim alguns segundos. Ele também tinha os lábios secos. Vi-o endireitar o corpo; o sangue lhe fugia das faces; eu o estava provocando, faltava-lhe coragem. Cruzei os dedos e sobre eles pousei o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, fixei meus olhos nos deles quase que suplicando que me tomasse, jogasse-me no canapé e...
Para surpresa minha, mostrou-se arrependido.
E logo, alto:
- D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu...
- Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e meia. Tem tempo. Você perdendo a noite é capaz de não dormir de dia?
- Já tenho feito isto.
- Eu não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.
- Que velha o que D. Conceição?
Tal foi o calor da palavra que me fez sorrir esperançosa. Afastei meu personagem diário e me ergui. Ele também ergueu-se rapidamente. Pareceu-me que ele , afinal, decidira-se. Não. Disfarcei. Passei para o outro lado da sala e dei alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete de meu marido. Insinuava-lhe o caminha da alcova. Ho Deus! Matai todos os intelectuais - entendem tudo, menos o que lhes está diante do nariz, Procurei até forçar um pouco o balanço dos quadris, mostrei-me o quanto pude. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou consertando a posição de algum objeto no aparador; - Senhor Nogueira, como está calor. - Dezembro, D. Conceição. Afinal, detive-me ante ele, Estou aqui priminho sou toda sua decide-te pelo amor de Deus com a mesa de permeio. Suava frio, dava para notar, Mas ficava ali, deixando-me a ver navios. Tornei ao espanto de vê-lo acordado vamos logo para a cama priminho malvado; e ele me repetia o que eu já sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na corte, e não queria perdê-la.
- É a mesma missa da roça.; todas as missas se parecem.
- Acredito, mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na corte é mais bonita que na roça; São João não digo, nem Santo Antônio.
Ofereci-lhe uma visão dos braços. Finquei os cotovelos no mármore da mesa e meti o rosto entre as mão espalmadas. Não estando abotoadas, as mangas caíram naturalmente, e desnudei-me a partir dos braços. Ficou realmente perturbado; a chama bruxuleante avivou-se, ganhou força, virou incêndio. Começou a falar por falar. Continuou a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras coisas que lhe vinham à boca. Decide-te meu pequeno príncipe Estou pronta para receber-te Pode ser no canapé ou sobre a mesa como quiseres Falava emendando os assuntos, sem saber por que, variando deles ou retornando aos primeiros, e rindo, rindo melhor gemer de prazer priminho burro todo mundo dormindo rara oportunidade Tratei de chamar-lhe, mais uma vez, atenção. Falei-lhe quase que roçando os lábios:
- Mais baixo. Mamãe pode acordar.
Afogava-me de desejo. Ele - eu o sabia - ,também. Faltava audácia; eu me oferecia e...nada. Afinal, cansei; troquei de atitude e de lugar. Dei volta a mesa e fui sentar-me ao lado dele no canapé. Cheguei a um gesto displicente de levantar o roupão o máximo que pude às costas dele, antes de sentar-me. Disse-lhe baixinho:
- Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada. tão cedo não pegava no sono. Vamos, amor. Nosso momento único; vamos para minha alcova, lá não há perigo de acordar alguém.
- Eu também sou assim.
- O quê? - perguntei-lhe e inclinei o corpo para ouvir melhor. Roupão bandido: bem que poderias ter aberto como eu previra. Traidor. Olha meu corpo, priminho, olha.
Pareceu-me que escutara meu pensamento. Veio sentar-se na cadeira que ficava ao lado no canapé e repetiu a palavra que não me interessava. Ri-me da coincidência; também ele tinha o sono leve; éramos três sonos leves. Fiquei sem saber o que dizer. Procurei uma imagem de mulher rolando no leito cavalgada por D'Artagnan, o fogoso.
- Há ocasiões em que sou como mamãe, acordando custa-me a dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo a vela. passeio, torno a deitar-me e nada.
- Foi o que lhe aconteceu hoje.
- Não, não - atalhei com ênfase. Nem pensei em dormir seu bobinho.
Escutou-me de novo o pensamento. Peguei das pontas do cinto e bati com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque de repente recatei-me e cruzei as pernas. não quisestes ver, é tudo teu Falei-lhe de sonhos, que tudo podia acontecer como num sonho e que depois só ficava a recordação vaga e saborosa; algo muito pessoal. como nós dois aqui podendo explodir de prazer: um sonho e depois acabou Perguntei-lhe se também tinha sonhos e emendei com um pesadelo que tivera em criança. E de novo lentamente reatamos o jogo das palavras, conversas que não interessavam nem a mim nem a ele; um substituto covarde para a coragem que faltava. E quando em quando, esforçava-me por aproximar-me Nogueira, o tempo urge... e o reprimia:
- Mais baixo, mais baixo.
Havia também umas pausas. eu cerrava os olhos e o via submetendo meu pobre corpo as mais dolorosas e deliciosas carícias; eu o beijava em pensamento. Uma dessas vezes creio que o flagrei embebido a olhar meu pensamento; tornei a fechar os olhos em sinal de felina concordância. Por um momento, nos amamos em pensamento com toda a intensidade de um ato real. Fiquei em pé, os braços cruzados; ele, em sinal de respeito, quis levantar-se; em transe, não consenti, pus uma das mãos no ombro dele, e absorvi a energia que se lhe desprendia do corpo. E senti o prazer que até aquele momento a vida me havia furtado. Quase gritei de verdade. Não pude esconder o frêmito do momento e o arrepio que me inundou o corpo misto de paz e gozo. Voltei-lhe as costas para que não me visse me visse mordendo os beiços e fui sentar-me na cadeira onde ele estava lendo - mendigando um pouco do calor da almofada. Dali relanceei a vista para o espelho, que ficava por cima do canapé - consegui fingir bem que não sucedera o sucedido; falei das duas gravuras que pendiam da parede.
- Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros..
Chiquinho era meu marido. Os quadros falavam do principal negócio dele. Um representava "Cleópara"; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Ambos vulgares.
- São bonitos - disse ele. E eu que me derramei em teus braços em sangue e alma... De mim o que dizes ingrato?
- Bonitos são; mas estão manchados. E depois, francamente, eu preferiria duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.
- De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.
- Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita coisa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita, mas é de escultura, não se pode por na parede, nem eu quero. Está no lugar do oratório. Lá seu moçoilo burrico onde poderíamos estar orando pela divina graça do prazer. Do prazer que tivemos em pensamento mas que ainda pode ser real.
De novo escutou meu pensamento; esbouçou uma resposta. Calou-se. Tentei, mais uma vez, motivá-lo. Encontrava-me sob o domínio do gozo recém descoberto e procurei sinceramente agradecer-lhe. Falei-lhe de minhas devoções de menina e moça. Em seguida, referi umas anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Eu estava eufórica ó Nogueira que bom que você veio; pensava no passado, falava no presente, nos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe disse ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Casei-me aos vinte e sete anos. e esta foi minha primeira noite de amor Nog querido. Obrigada. Muito Obrigada.
Ao torpor, seguiu-me um relaxamento agradável. Estado de graça. Isto, creio que estado de graça. Já me imaginava deitada só com meu prazer...
- Precisamos mudar o papel da sala - disse-lhe por dizer algo, como se falasse comigo mesma.
Concordou, também para dizer alguma coisa. Naquele momento senti que ele também sentira algo e se encontrava numa espécie de sono hipnótico, semelhante ao torpor que me tolhia a língua e os sentidos. Notava-se que ele queria e não queria acabar a conversação; fazia esforços para arredar os olhos de meu corpo, e arredava-os constrangido e logo voltava. Vinguei-me. Mantive-me indiferente. A conversa ira morrendo. Na rua o silêncio era completo.
Chegamos a ficar por algum tempo - não posso dizer quanto - inteiramente calados. O rumor único e escasso era um roer de camundongo no gabinete, que nos acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele mas não achei modo, melhor o devaneio. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: "Missa do Galo! Missa do Galo!
- Ai está o companheiro - disse eu aliviada, levantando-me.
Ele me olhou suplicante. Insisti. Quem manda seres tolo, intelectual de fraldas.
- Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo e ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.
- Já serão horas? - perguntou-me, num tom pegajoso.
- Naturalmente.
- Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus, até amanhã. Eu me diverti bastante; se não o conseguistes foi porque não o quisestes...
E, como vencedora, carreguei meu troféu - o momento único, indivisível - e balançando propositadamente o corpo enfiei pelo corredor adentro, pisando mansinho.
Na manhã seguinte, ao almoço, ele ainda falou da missa do galo e da gente que estava na igreja; não lhe perguntei nada porque nada me interessava - tinha comigo meu momento de prazer e isto me bastava.
Nunca mais tive notícias do priminho distante.
Como boa personagem de Machado de Assis, logo após a morte do Meneses - morreu de apoplexia dias após a noite de natal - casei-me com o Escrivão Juramentado em fevereiro, ou melhor, renovei o contrato com o Cartório e depois me transfigurei em outras criaturas: Capitu é a que me transporta pelos séculos.