O PACIENTE
A enfermeira ataca a veia, com a seringa na mão. A veia escapa. A persistente guerreira se empenha noutra fincada. E noutra. E noutra. Finalmente, captura a fujona. O braço arroxeado de Lázaro sofre os estragos da batalha sangrenta. Todo dolorido! Mas isso é o de menos, são muitas perturbações. Deitado num dos três leitos da enfermaria gelada e angustiantemente branca, triste, sinistra, ele pena uma tempestade interminável de incômodos: paciente gritando a noite inteira, o chato ao lado que teima em ver televisão até cair no sono, atendentes de enfermagem entrando e saindo às gargalhadas, falando de novelas e machos, a qualquer hora da madrugada, odores insuportáveis de fezes, urina e éter; e muito, muito mais.
Desde que sofreu aquele horroroso tombo na rua, há dois meses, sua existência tornou-se um inferno. Fratura seríssima, cirurgia perigosa e demorada, tratamento difícil, prostração. Depende das enfermeiras até para as necessidades fisiológicas. Quanta vergonha! E o banho de leito? Arnalda, a técnica de enfermagem, faz questão de cumprir essa tarefa. Todo dia de manhã ela chega, com a caixa de utensílios e sua carinha jovial, feiosa e safada, pronta para constrangê-lo. Passa o lencinho úmido por todo o corpo do moço, mordendo os lábios de maneira provocante. Dedica-se mais às partes íntimas; esfrega seu sexo insistentemente, com a única intenção – acredita ele – de humilhá-lo. Sim, porque nada acontece. A equipe médica passa sempre às pressas, afoita para concluir a exaustiva corrida de leito, como chamam tal função. Numa rotatividade vertiginosa, pacientes chegam e saem a todo momento; às vezes, chegam muito mal e saem bons, outras, chegam bons e saem mortos. E ele entrevado em seu leito, nenhuma perspectiva de alta, pelo menos nos próximos dias.
Tarde de domingo. Um infeliz companheiro de enfermaria resolve ligar a televisão. Ai! Os gritos apavorantes do farto apresentador do programa estrondam no cérebro de Lázaro. Lembra-se da frase que sempre ouviu, achou engraçada, mas nunca imaginou que a sentisse na carne, nos nervos: “nada é tão ruim, que não possa piorar”. À custa de um esforço enorme, consegue desligar-se dali. Entre lembranças e sonhos emaranhados, adormece.
Churrascão na casa de Magno! O pagode anima os casais em danças desengonçadas e trôpegas. Latinhas de cerveja em todos os cantos; fartura, entusiasmo, balões coloridos espalhados pelas paredes, muita gente falando ao mesmo tempo. A campainha toca e o anfitrião vai atender mais um convidado:
– Meu amigo! Que bom que veio!
– Estou até com um colega doente, precisava visitá-lo, mas deixei pra outro dia. Preferi vir lhe dar um abraço, meu amigo! Afinal, pessoas como você são raras e merecem toda a consideração. Feliz aniversário!
Muitos presentes em cima da cama. É o trigésimo aniversário do moço. Amigos o cobrem de elogios, de afagos no ego: “você é o cara mais legal que já conheci”, “eu não esqueço de quando me ajudou a conseguir o emprego no escritório”, “homem mais solidário, não tem”, “nossa, Magno, como você tá lindo”, “você me deu muita força na morte da minha mãe”, “pode contar sempre comigo, parceirão”. E a cada novo amigo que chega, mais elogios e presentes. Na verdade, a casa de Magno está constantemente cheia de amigos. Não falta uma cervejinha, um petisco, som e bastante alegria para recebê-los. Um pouco zonzo pelo efeito da bebida, ele decide fazer discurso; discurso não, um breve pronunciamento, corrige. Os outros vaiam, de brincadeira, mas logo em seguida pedem que fale. O tão querido companheiro não hesita:
– É gostoso demais se sentir amado. Fico radiante por saber que tenho tanta gente bacana, especial perto de mim; pessoas do bem, que estão sempre do meu lado, pra festejar a vida. Sei que todos vocês são leais e estarão comigo pra o que der e vier. E como isso me conforta! Adorei os mimos que ganhei, mas o importante mesmo é a presença de cada um, é saber que não estou sozinho. Deve ser muito triste passar por um momento difícil e não ter ninguém pra dividir o peso. Que bom que jamais conhecerei esse abandono. Eu sou um privilegiado! Muito obrigado, meus inseparáveis amigos de todas as horas!
Os presentes aplaudem, entre berros de “bravo” e “fala mais”.
Arnalda entra na enfermaria, vai direto ao leito de Lázaro, para trocar o soro, e o desperta de seu cochilo. Ai, essa brancura torturante de novo! Esses cheiros de doença...
– Terminou o horário de visitas. Vim cuidar do meu paciente fraquinho. – e liberta um riso maldoso, sarcástico, de lábios fechados.
Mais um dia sem visita, mais um dia sem ninguém. Hoje, Lázaro Magno completa trinta e um anos.