Falcão

Despediu-se do irmão como se fosse voltar para casa antes do sol como das outras vezes. Deixou o pirralho jogando videogame porque no dia seguinte não haveria aula. Mais um dia de trabalho. Rádio comunicador na cintura, bandoleira folgada e a carga diária de pó para driblar a tensão que acompanha todo falcão no posto de observação. Depois da primeira carreira, o sangue circula em ritmo acelerado, as pupilas se dilatam e o medo vira o parceiro fiel que acompanha o soldado na escuridão.

De plantão no sereno, ouve atentamente a estática emitida pelo rádio. A voz do vazio corrói seus pensamentos, o moleque esfrega a cabeça, os olhos e manda pra dentro mais uma linha que golpeia sua ansiedade o mantendo suspenso da realidade iminente: uma possível invasão dos vermes e o tombamento de algum parceiro que estivesse fazendo a contenção. Não via a mãe há pelo menos 2 meses. Sendo empregada doméstica, ficava à disposição dos patrões por 24 horas e nos finais de semana tinha o aval deles para rever seus miúdos, mas já se passara oito semanas e nada de ela voltar para sua casa. A mãe da patroa chegou a casa em mau estado de saúde e necessitando de cuidados ,ficara ela, a mãe dos garotos, incumbida de cuidar da pobre senhora e ela assentiu por medo de desagradar os chefes e também por compadecer com a situação da enferma .

A comida antes escassa na dispensa, esgotara-se de vez e o pequeno a reclamar com o irmão, repetia matinalmente o mesmo bordão: tô com fome. Aproveitando-se da inocência do menino, dizia a ele que o pão já chegaria, que a mãe já o estava trazendo. E assim ia tapeando a fome do miúdo até o horário da escola dizendo-lhe mais uma vez que a mãe se atrasara por causa da condução ou por qualquer outro motivo e que ele comeria algo na escola. Ia o miúdo se arrastando pelos becos e vielas, o estômago vazio, a boca seca e o ânimo para ir à escola ausente por completo, mesmo sabendo que lá ganharia no mínimo um copo de leite e umas duas ou três bolachas Maria. Era o último dia de aula, enfim acabar-se-iam o ano letivo e infelizmente as canecas de leite e as bolachas que eram o almoço do garoto. Diante da situação, olhou para o irmão e viu que não poderia permanecer naquela minguada situação, pois não haveria sorte que sustentasse os dois. Mercadoria para vender nos asfalto não havia, nem bala de coco, água mineral ou qualquer outro insumo que pudesse gerar algum retorno. Malabares nunca aprendera, esmola nunca pedira, pois seu tipo físico não condiria com a situação de quem vive de pedir pelas ruas.

Saiu então a caminhar em busca de uma possível solução. Andando pelas ruas estreitas da comunidade encontrara seu amigo que atendia pelo nome de Farinha e que de mochila nas costas despertou-lhe a curiosidade. Perguntou a ele por que ainda estava de mochila se o ano letivo havia terminado. Farinha disse a ele que não era para explanar, que não estava ele voltando da escola e que na bolsa não carregava nem caneta nem papel, mas mercadoria. Pensou: sorte a dele, vai descer para o asfalto e fazer uma correria pra levantar uma prata. Não só pensou como externou o pensamento e o Farinha afoito respondeu de supetão: é ruim, viciado quer, viciado vem. Eu não desço naquela porra nem fodendo. Vapor se perde carga, dependendo perde a vida também e eu ainda vou ser o dono dessa porra toda, Jota. Assim João era chamado pelos amigos. Já iniciado o diálogo continuou Farinha a falar com Jota: ser vapor é melhor do que ser fogueteiro, pelos menos tu ganha um ferro pra pendurar na cintura pra ninguém te fazer de otário e ainda ganha um a mais pela quantidade de mercadoria que é vendida para os viciados, mas o bagulho mesmo é ser Falcão. O Falcão é o cara responsável por vigiar a comunidade e dá o papo quando os verme ou os alemão se aproxima da comunidade. É ficar na linha de frente com um 7.62 fazendo a contenção, com disposição pra matar ou morrer pelos parceiro que também tão na correria. João ficou observando o Farinha, moleque mirrado que até o outro dia só queria saber de jogar bola e soltar pipa e que agora se portava de modo altivo na sua condição de vapor, como se já vivesse na mesma desde que nascera. Perguntou-lhe se valia à pena distribuir a carga dos viciados, e o Farinha empolgado que só, respondeu que não só valia como Jota também deveria trabalhar junto com ele. Subiram então os dois até o Vietnã, como era chamado o quartel general do tráfico. Ao entrar, Jota foi logo sendo apresentado ao ambiente. O amigo investido da autoridade que lhe proporcionara a condição de vapor ia explicando como funcionava o QG : essas aqui são as piranha da endolação que não usam roupa pra não roubarem uma grama do bagulho que vale ouro , aquele ali na mesa é o Gerente, o cara responsável por fazer as contas e anotar tudo que entra e sai da boca, cargo de confiança e tem que saber também fazer conta, parceiro do chefe e conhecido como Matemático. E atrás daquela porta fica o Cobra, o dono dessa porra toda e que eu vou te apresentar. Farinha bateu na porta e disse que o papo era de responsa e que queria desenrolar ali mesmo. O Cobra então o mandou entrar e disse: fala moleque, dá o papo. Então chefe, a boca tá crescendo, tá vindo viciado à vera comprar com nós e eu trouxe aqui meu irmão Jota que veio porque se interessou pelo corre de vapor. Cobra olhou Jota atentamente, reparou no seu porte físico, perfil atlético,olhar penetrante e intimidador. Contemplou o garoto por mais alguns segundos e perguntou-lhe: já pegou em arma moleque? Sabe o que que é uma intratech, uma PT 380, um 7.62? Jota respondeu que nunca usara uma, mas que já ouvira falar delas. Farinha então pediu permissão para falar: pode deixar chefe, em uma semana meu mano Jota já vai tá fazendo a correria melhor do que eu e garanto que não vai ter caô. Cobra então autorizou o ingresso de Jota na quadrilha colocando Farinha como responsável por orientá-lo. Jota não teve tempo de pensar como chegara até aquele lugar e como de lá saíra, com uma arma e uma carga de drogas para vender, já era tarde, agora entrara para vida bandida e a ela teria de se adaptar.

Iniciou Jota no posto de vapor, passava no Vietnã e enchia a bolsa de papelotes de cocaína, maconha e craque, ficava ele responsável pela carga e pelo dinheiro que dela obtivesse. Depois de retirada a droga da boca, só lá voltava para deixar os rendimentos e encher a mochila novamente. A ordem do gerente era que no ato da compra, o viciado, o nóia teria que pagar tudo em moedas pra não dificultar a contabilidade, mas jota queria mostrar serviço e aceitava também moedas. Trabalhava em jornada dupla, pois além de vender a mercadoria, tinha que trocar as moedas por cédulas e para isso tinha que descer até o asfalto e fazer a troca com os comerciantes locais que as quisessem. Desse modo Jota foi ganhando cada vez mais prestígio, pois obtinha um alto faturamento com as vendas e era o vapor que mais dava viagens para obter mais mercadoria e continuar a vender.

Percebendo Farinha, o comprometimento de Jota com o trabalho e sua possível possibilidade ascensão de posto, sentiu-se ameaçado e pensou em um modo de prejudica-lo, já que o Cobra ressaltara que o novo vapor sim era digno de integrar o seu grupo de elite, o dos falcões. Farinha não pensou duas vezes em prejudicar o amigo, agora concorrente, e entregou a posição de Jota para os policiais que já o aguardavam para apreender a droga. Jota então foi apanhando pelos agentes da Delegacia de Entorpecentes, mas logo depois foi liberado e Farinha, com sede de vingança e inescrupulosidade para derrubar quem passasse pelo seu caminho, não imaginara que os agentes não levariam jota, mas que negociariam um possível resgate pela carga e pelo vapor com o Cobra. Recebendo o contato dos agentes, o chefe não pensou duas vezes e abriu o caixa para libertar seu mais exímio vapor, um moleque como ele nunca vira antes e que merecia ser resgatado urgentemente e realocado ao seu posto. Além de Farinha não contar com essa possibilidade da negociação pela libertação de Jota, não contara também com a ganância dos agentes que prometeram entregar quem havia dado o paradeiro do novo vapor. Assim aconteceu, Farinha foi entregue pelos policiais em troca da carga apreendida com Jota que no asfalto lhes garantiria um bom lucro. Farinha foi então encaminhado para uma conversa com o Chefe. Já certo do seu destino como traidor, foi já esperando o pior, porém não esperava que o pior lhe pudesse acontecer pelas mãos do próprio Jota que fora incumbido por Cobra de dar fim ao X9. Rapidamente o ânimo de Farinha sofreu alteração, olhou para o amigo e na mente veio como uma sequência de polaroides as lembranças de tudo que viveram até ali, dos tempos que jogavam bola, soltavam pipa e aprontavam pelas ruas estreitas da comunidade. Na cabeça de Jota ecoavam as palavras ditas pelos ouros vapores: pra X9 não tem perdão; o sujo entregou o amigo, o irmão; Jota, hoje você vira sujeito homem, vai mostrar como se faz com vacilão traidor dos irmão; não aguentando mais ouvir as vozes que o dilaceravam por dentro, iniciou então os procedimentos: envolveu Farinha vivo em pneus de automóvel, pegou de um galão de óleo diesel e ateou fogo no amigo que gritava em um rebento perturbador que deixava Jota cada vez mais angustiado e perplexo rezando para que tudo aquilo acabasse logo.

Jota não fora direto para casa nesse dia, pois sua presença fora solicitada pelo chefe que o esperava no Vietnã. Chegando à boca, Jota fora recebido com honras de chefe de Estado. Não faltaram elogios, palavras de incentivo, abraços e tapinhas no ombro. Para Jota, nada daquilo fazia sentido. Passava pelos que o felicitavam como um corpo vazio, nada ouvia ou sentia, a única coisa que não saia de seus pensamentos era o corpo de Farinha a desaparecer em meio às chamas da fogueira que ele mesmo fora obrigado a armar. Chegara então à sala do Cobra, só dava respostas monossilábicas ou gestuais com meneios de cabeça, a única coisa que pudera apreender da experiência é que com vagabundo não se nega nada, tudo deve ser engolido a seco e assim fizera, de vapor fora promovido a Falcão.

Das vielas estreitas para a pedra ou lage mais alta da favela, agora portava um 7.62, um rádio comunicador e alguns papelotes de cocaína para o caso de sentir-se nervoso ou cansado, pois Falcão não dorme, nem deve. Promovido, Jota não encontrara o glamouroso mundo da vida de Falcão que descrevera Farinha. Ainda ouvindo o crepitar da carne do amigo a queimar envolto em pneus e óleo diesel aspirava carreiras e mais carreiras de pó para não ouvir nem ver a imagem do primeiro assassinato que cometera. As noites foram se tornando cada vez mais longas e perturbadoras, ficava ele na penumbra a olhar quem chegava e quem ia embora daquele lugar e imaginando se ele poderia um dia vir a ser um desses que partiam para o asfalto despreocupadamente, mas logo recobrava a consciência e se via na situação em que estava: no sereno, esquecido e atormentado pelo crime que cometera. Promovido a Falcão, rebaixado a trapo humano. Jota tornara-se loucamente fissurado a ponto de não mais receber o pagamento em dinheiro, mas em pó. Nas noites que ocupava o posto, não mais vivia na realidade, entorpecido ficava ele num universo paralelo, já não via mais quem entrava ou saia da favela e numa dessas vaciladas veio o golpe. Era dia de operação e o fuzil 7.62 não foi suficiente para o combate, Jota fora atingido no tórax e morrera no mesmo momento em que o projétil o atravessara. Tombara de olho aberto. Ao seu lado, na poça de sangue em que sua vida se esvaía , provava do gosto da morte com a certeza de que aquele posto não mais iria ocupar.