Dezesseis Anos
Dezesseis Anos
“De ontem para hoje eu sonhei com a minha futura profissão. Deitei logo depois do jantar e não quis assistir à novela das oito. Não sei por que o povo fala que é “das oito” o certo seria dizer que é das nove; começa próximo das nove e termina quase dez da noite! Se estamos numa época de campanha eleitoral, piorou! A novela começa às nove e vinte e termina quase dez e meia... Porquê será que insistem em dizer que é das oito?”
Ela interrompeu a escrita do seu diário, para responder a uma pergunta que a mãe lhe repetia; estava tão absorta na escrita do diário que não a escutou da primeira vez. A pergunta repetia-se:
— Eliana! Não quer assistir à novela comigo?
— Não, mãe! Não quero, já vou me deitar... Tô com sono e amanhã cedo a primeira aula é às sete horas... Boa noite!
Após responder, fechou o diário e o guardou sob o travesseiro. Esperava que a mãe entrasse e lhe desse um beijo de boa noite. Nisso, uma sirene de viatura – provalmente policial, pensou ela – soou alto na rua. Os reflexos azuis e avermelhados do giroflex lançavam-se sobre o teto do seu quarto, no alto do terceiro andar, cujas cores fizeram um arrepio percorrer o seu corpo. Ao escutar a reclamação da vizinha, uma sensação de mal estar lhe estremeceu o estômago. Inclinou-se sobre o crucifixo que levava junto ao seu pescoço e beijou-o; uma triste sombra avançou sobre o seu coração. A voz da vizinha chegou mais uma vez, em alto e bom som...
— Mataram mais um! Olha lá! A viatura parou no fim da rua.
Do apartamento ao lado, pegado por parede ao de Eliana, a visão da vizinha avançava até o fim da rua do condomínio da Cohab em que moravam.
A mãe dela entrou e abraçou a filha. Eliana, sonolenta, retribuiu o abraço e beijou a mãe no rosto.
— Durma com Deus, minha filha!
Eliana fechou a porta, logo após a saída da mãe de seu quarto, apanhou a caneta e retomou a escrita.
“Toda vez que a viatura vai para o fim da rua, é por que algo de muito ruim aconteceu; a galera do Doni é da pesada. Vai ver que brigaram novamente e nessas brigas saem até mortes. Não posso falar do Doni sem lembrar-me do meu querido Greg. Ele estava envolvido com tráfico e fui firme com ele; pedi para que escolhesse entre eu e o tráfico. Porém, seduzido pela grana fácil, me deixou... Não fiquei triste por que isso mostrou-me o seu caráter! Mas, eu ainda o amo... Ah! Já estava esquecendo do meu sonho. Foi muito... ”
Tocou o interfone e, do seu quarto, pôde escutar sua mãe respondendo á alguém que iria lhe avisar. Pouco depois, uma batida seca na porta de seu quarto, seguida de mais duas. Era a mãe, tinha certeza. O pai chegaria somente mais tarde. Era muito raro ele chegar cedo. Por entre a porta, entra em seu quarto a mãe. Olhos assustados; expressão de pânico.
— Que foi? Mãe? Que aconteceu?
— Foi uma coisa terrível!
O pânico da fisionomia da mãe espelhava-se no rosto de Eliana.
— Com quem? Com o pai?
Uma lágrima desceu dos olhos cor de mel de Eliana, a espera de uma curta e triste resposta.
— Não... Foi o Greg. O Doni o matou... Dois tiros à queima roupa, no meio da cabeça.
Eliana jogou-se sobre a cama e chorou, aos soluços, lembrando da última conversa que teve com Greg.
Naquela última vez em que se viram, ele estava com a sua bermuda larga de bolsos fundos e, notava-se, alguns pequenos embrulhos os enchia. Ela sabia o que significava aqueles pequenos volumes em seus bolsos. Ele a abraçava, ao final da tarde, numa pequena área próxima ao hall do condomínio. Um lugar simples, pessoas simples. Ela lembrou-se de cada palavra daquela conversa...
— Greg, te amo muito. Te amo, mesmo, com toda a minha vida... Tenho só dezesseis anos e namoramos há três. Você foi, até agora, o meu único namorado, bem como foi também o único com quem fiz amor. Mas... por que tá traficando? Eu sei que nossa vida é dura, nossos pais ganham pouco, temos poucas opções de lazer e que quase tudo nos é impedido por não termos dinheiro... Mas, a parada é mais dura do lado do tráfico. Além disso, nossos amigos que entram por esse caminho somente acabam encurtando a vida... Pare com isso, por favor. Eu te quero vivo...
Dominado pela expectativa do dinheiro fácil, Greg sorriu e disse-lhe, sem muito ânimo.
— Ae, mina... Tô ligado que tu não tá na minha! Não tá não! Essa parada é pra gente descolar um troco rápido. Depois saio dessa e a gente vai se dar bem. Na boa... Um bocado de money pra gente começar a vida juntos... É o que precisamos; Pô! Terminei a bosta do Curso de Ferramenteiro – ae, é ensino médio profissionalizante, pô – e nem assim consigo emprego! Só tenho essa solução...
— Meu, para! Cê tá nessa há mais de três meses! Tô fora... Você tem que escolher! Ou eu ou o tráfico!
— Meu, sem idéia! Não dá pra parar agora! A grana tá entrando é agora, vou ficar nessa.
Os ânimos exaltaram-se e acabaram por trocar algumas outras palavras, de tons mais ásperos, das quais ela não se recordava com muita exatidão, porque tal diálogo foi um mês antes da morte do Greg. Então, a seqüência que agora nos parece lógica foi, a bem da verdade, entrecortada com expressões que lhe fugiram ao longo do tempo e lhe restou, em sua memória, duas frases concatenadas simbolizando o raciocínio de cada um.
Naquela noite, após quase uma hora de choro descontrolado, Eliana voltou-se para o diário e complementou a frase que havia começado antes da triste notícia.
“Foi impressionante sonhar com o Greg. No sonho eu era psicóloga e procurava ensinar-lhe algumas noções sobre ideais mais elevados, onde ele não procurasse por caminhos que acabariam encurtando a vida dele; trabalhava eu como psicóloga numa instituição para jovens envolvidos com narcotráfico, numa busca pela recuperação daquelas pessoas. Que sonho maravilhoso! Eu nunca teria adivinhado que ele iria morrer hoje...”
Dezesseis anos depois, a página do diário era revista pela autora; uma lágrima escorreu e manchou o envelhecido papel, juntando-se à marca de outra lágrima derramada na ocasião do falecimento de Greg. Eliana arrancou a página do diário e juntou-a atrás do diploma de Psicologia. Há sete anos trabalhava como psicóloga e somente agora ela pôde ingressar, depois de ser aprovada em concorrido concurso público, numa instituição para exercer a profissão com a finalidade que sonhara.