Meu amigo... Sócrates!
Como sempre, todo fim de tarde, aquele homem caminhava pelo calçadão da aprazível Praia de Manaíra - em João Pessoa, capital da Paraíba -, acompanhado de um cãozinho com a pelagem preta e branca.
Passeio tranquilo, brisa batendo no rosto e agitando os pelos do cãozinho que trotava todo serelepe, cabeça e cauda – muito peluda - em forma de penacho altivamente erguidas e balançando enquanto acompanhavam a cadência dos passos largos do dono. Naquela tarde, véspera de feriadão, a orla estava apinhada de gente. Todos esperando se divertir à grande nas praias de João Pessoa, Cabedelo e Lucena, no Litoral Norte; Conde e demais municípios do Litoral Sul paraibano.
O homem e o cãozinho divertiam-se enquanto caminhavam pelo calçadão. Ele, admirando os saltos acrobáticos dos praticantes de “windsurf” nas cristas das ondas do mar nas praias de Manaíra e Tambaú; o cãozinho, olhando alegre e curioso para outros “pets” que retribuíam dando latidos amistosos para ele que, indiferente às manifestações recebidas, erguia ainda mais a cabeça e a cauda, voltando o olhar para a frente, como se fora um cão perdigueiro.
Um grupo numeroso de pessoas à frente do homem e seu cão, algumas sentadas na beirada do quebra-mar, outras em pé, chamou a atenção do homem com o seu cão. As pessoas do grupo, aparentemente, paparicavam um criança de uns cinco ou seis anos que estava sentada nos joelhos de um senhor de cabelos brancos e compridos amarrados rente à nuca em estilo “rabo de cavalo”.
A criança quando viu o cãozinho ficou toda agitada no colo do idoso e, enquanto apontava para o animalzinho, gritava entusiasmada - Vôinho! Vôinho! Eu télo aquele tatoínho... Compa pá mim, vôinho! Compa!!!
O pai da criança que conhecia as extravagância do avô – a propósito, riquíssimo -, quando se tratava de atender aos desejos do bisneto, e, temendo uma cena vexaminosa, com muito tato para não melindrá-lo, observou que, naturalmente o dono do cãozinho, provavelmente, não estivesse disposto a vender o seu animal de estimação e que, talvez, o homem nem fosse o dono do cachorrinho, muito bonito e engraçadinho, é verdade; que talvez o animalzinho pertencesse a algum filho do homem ou talvez pertencesse à esposa do homem... O pai da criança falou para o avô que tinha tanto “talvez” que não valia nem a pena se incomodar com assunto... Por fim o neto do ancião ainda observou que o Avô mimava demais o bisneto, que deixasse pra lá... Que não desse atenção ao menino... Que não se incomodasse com o pedido do Tavinho Junior...
O velhinho, beirando uns oitenta anos, mas ainda taludo, rijo como um pé-de-aroeira, chapéu “Panamá” de abas largas na cabeça, calçando umas alpargatas de couro de bode e trajando camisa e calça de linho branco, puro “HJ” - acostumado a mandar e ser obedecido, sem contestações - acomodou o garotinho no colo, fungou alto, franziu o cenho para as preocupações exageradas do neto e falou:
-Home, deixe de bestagem! Num vê que até hoje, nunca neguei um pedido do “bichim” e num é agora, neste instante, que vou me arreliar cum isso... Oxénte! – e lançando um olhar para o neto que somente os patriarcas são capazes de fazer, continuou -Avô e Bisavô, Avó e Bisavó, só presta mesmo é pra paparicar neto e bisneto... Cum sorte, tataraneto! Então, se avexe não! Sei o que ‘tou fazendo... Ôxe! – incontinenti, o ancião com uma das mãos, afastou a parentalha que atrancava o calçadão e fez sinal para o homem acompanhado do cãozinho, chamando-o:
-Cabra! Ei, cabra! É tu mesmo, home...! Acompanhado do cachorro...!!! Chegue aqui, chegue...! Mostre o cachorrinho aqui prá Tavinho Júnior, mostre!
Surpreso com a forma bizarra daquele velho atrevido chama-lo, o homem parou e olhou interrogativamente para o ancião que, após descer o agitado garotinho do colo, indicou o pequeno animal para a criança que olhava o cachorrinho com os olhos brilhando de curiosidade. -Olhe, Tavinho Júnior, olhe! Cachorrinho bonitinho, num é?! – e sem dar a menor importância para o homem parado à sua frente, o velho estalou os dedos para chamar a atenção do pequeno cão –Aqui, cachorrinho...!!! Iska! Iska! Iska! Pegue! Pegue!
O homem, ainda sem entender nada do que estava se passando, percebendo que a criança estava agitada com o cãozinho, gentilmente afrouxou a guia da coleira para o cachorrinho que, abanando a cauda muito peluda com simpatia, levantou as duas patas dianteiras e as apoiou nos joelhos do ancião, ao mesmo tempo que tentava lamber as mãos da criança que sorria embevecida e surpresa com a simpatia do cão.
-Réle a mão nele, Tavinho Júnior, réle...! Ói...! Ele gostou de você! Quer ser seu “pareceiro”, Tavinho Júnior... Vixe! Mas ele é danado de alegre... – e olhando para dono do cachorrinho o ancião perguntou - Como é nome dele? É de que raça, é?
O homem titubeou ainda algo aborrecido com a maneira inusitada como o velho o havia interpelado, mas percebendo a forma simpática de como o grupo de pessoas ao redor do menino e do avô brincava com o cachorrinho e, resolvido a remover qualquer possível antipatia nascente, respondeu tentando ser simpático:
-Sócrates! O nome dele é Sócrates! – o velho levantou os olhos do cachorrinho e falou -Sócates! Já ouvi falá! Era um jogador de futebor, né? Lá de Sum Paulo... Jogô também na Seleção... – depois do comentário, o ancião não deu mais importância ao homem parado à sua frente; tinha a atenção toda voltada ao menino e ao cão.
O homem pensou em corrigir o velho a respeito do nome do jogador mas, achou melhor esquecer o detalhe e completou a informação solicitada pelo velho. -E o nome da raça dele é “Lhasa”... “Lhasa Apso”... – o velho encarou o homem, sorriu friamente, depois falou: -“Liaza?” Vôte! Que nome esquisito é esse? “Liaza?” – desta vez o homem resolveu corrigir a pronúncia do velho -“L h a s a”... “Lhasa Apso”, senhor! Pronuncia-se “Lhasa Apso”! – o velho resmungou – Hummm! Sei..!!! “Liaza”.
O velho colocou a criança entre as pernas e a instigou para ficar passando as mãozinhas pela pelagem do cão, e olhando para homem, perguntou, assim... Como quem não quer, querendo...
-Ele é sadio? – o homem estranhou a pergunta, mas respondeu - Como uma rocha! – o velho continuou indagando - E os dentes dele, são bons? – mais uma vez o home achou a pergunta estranha, mas falou - São melhores que os meus e os seus... Tritura qualquer osso! – o velho perguntou outra vez – Tem sarna? - ao que o homem fuzilando os velho com olhos, respondeu - Nunca teve!
O velho colocou o menino do colo novamente, fez um cafuné na criança que retribuiu fazendo beicinho para o bisavô:
-Compa ele pá mim, vôinho, compa! – o velho volveu os olhos frios para o homem e perguntou:
-O animal toma banho? – o homem apertou vagarosamente os olhos, deixou passar um brilho estranho por eles, depois resolveu relaxar... Sorriu divertindo-se com o interrogatório do velho impertinente e respondeu - Uma vez por semana... É sagrado! Toma banho com “champoo” e condicionador... E faz hidratação uma vez por vez por mês... A pelagem fica macia e sedosa... – e concluiu - Passe a mão...
O garotinho continuava pedindo ao bisavô: -Compa o tatoinho, vôinho, compa! – o pai do menino respondeu pelo bisavô – Júnior, deixe de dengo, macho! Quando a gente chegar em casa a gente vai conversar, visse? – o velho agitou a mão para o pai do menino como se afastasse um mosquito inoportuno – Deixe o menino, Otávio, deixe! Ele é só uma criança, visse! – e voltando-se para o homem com o cachorrinho, perguntou - Vende o cachorro? Ponha preço!
O homem pensou não ter entendido a pergunta e retrucou, pausadamente – Como é que é, senhor? – o velho insistiu – ‘Tô perguntando se o cachorro ‘tá a venda! Ponha o preço! Diga quanto é, home? – o homem parou de sorrir e perguntou novamente - O senhor deve estar de brincadeira... Está falando sério? Não está brincando? – o velho, impassível perguntou novamente – Oxénte, cabra! É surdo é? Ponha preço no animal, ponha...
Instintivamente o homem puxou a guia da coleira do cachorrinho como se quisesse protege-lo daquele velho, aparentemente louco, e respondeu:
-NÃO! É claro que não!!! ELE não está à venda! ‘Tá louco?
Percebendo que a situação caminhava para o constrangimento, os parentes que observavam o diálogo entre o Patriarca e o dono do cachorrinho, acharam melhor intervir para tentar minimizar possíveis desavenças:
-Vôinho, deixe disso, vôinho! – pediu uma neta.
-Onde já viu? Alguém vender um animal de estimação? – observou uma filha.
-Seu moço...! Releve aí, visse? Vôinho tem cada uma...!!! – pediu com extrema gentileza o pai do menino.
-Ôxe, painho! Depois a gente é que falta com o respeito com o senhor, visse! – repreendeu o avô do menino.
O patriarca, a despeito da indignação dos parentes não se abalou nem um pouco com os comentários desaprovadores...
-Oxénte! É tudo uma questão de preço, visse? Num ‘tô fazendo nada de demais... ‘Tô perguntando se vende e ‘tô pedindo prá botar preço... Se num botar, eu ponho... Ôxe! – e esquecendo os parentes, o velho olhou para o homem que o encarava de volta com olhos esbugalhados de incredulidade diante da sandice daquele velho gagá, perguntou novamente:
-Diga aí, cabra! Quanto custa um filhote deste cão? – engolindo o estupor de indignação, o homem tentando ser educado para acabar com aquele diálogo sem sentido, respondeu hesitante:
-Filhote...??? Preço de um filhote...??? Com pedigree... Não sei! Hummm... Sei lá...!!! Uns mil... Mil e quinhentos... Talvez uns mil e quinhentos reais... Por aí... Acho! – depois de responder ao velho, na opinião dele, completamente gagá, o homem instou o cãozinho para retomarem a caminhada, dando por encerrada aquele conversa completamente louca, sem sentido. Ledo engano, o garotinho percebendo que o homem queria ir embora, puxou a perna da calça do bisavô e gritou com um princípio de choro – Vôinho...!!! Eu télo o tatoinho, eu télo, vôinho!!! Compa!!!
-Espere aí, cabra! Num terminei a conversa... Ainda! Ôxe! Que desaforo? - o velho falou meio irritado.
O pai da criança teve que intervir novamente – Tavinho Júnior... Olhe, macho!!! Pare de aperrear Vôinho, visse...??? Tô ficando avexado com você, num sabe? – e se dirigindo ao Avô, aparteou - Vôinho, o moço que continuar a caminhada... Vamos dar o assunto por encerrado, visse? – o velho não se deu por vencido e, primeiro falando com neto – Num se avexe não, Otávio! – e depois falou com o homem - CINCO MIL! Pago cinco mil reais pelo cão! É três vezes o preço dum filhote... É um bom preço e bom negócio, visse!
Desta vez o homem quase explodiu de fúria com a indelicadeza do Velho impertinente, puxou o cãozinho para perto de si, e com os olhos fuzilando de raiva contida, respondeu mordendo as palavras:
-NÃO!!! Ele não ESTÁ à venda, Senhorrr! Não insista, c...i...d...a...d...ã...o!!!
O garoto, impertinente, continuava com a cantilena – Vôinho, eu télo o tatoio, vôinho! – o velho passou a mão na cabeça do bisneto para fazer um rápido cafuné e o acalmou – Num se aperreie não, Tavinho Júnior! Deixe comigo, macho! - o velho volveu o olhar para o homem e, impassível, aumentou o preço – SETE MIL! Pago sete mil, pelo cão! – o homem respondeu em cima da nova proposta - NÃO! – depois olhou para o pai da criança e falou, já bastante irritado – Esse velho é louco, é? Já falei que NÃO vendo! Caramba! É cada maluco que me aparece!
O velho insistiu – DEZ MIL REAIS! – o homem respondeu: ELE não está à venda! Eu já disse!
Desta vez o velho brilhou os olhos em desafio e, como se estivesse em um leilão de gado, insistiu: Pago TREZE MIL... Se recusar, aumento pra QUINZE, e se recusar de novo, eu passo pra VINTE MIL REAIS... Quero levar o cão e acabou-se...Dinheiro é o que não falta... Ôxe!
O dono do cãozinho que já estava abandonando o local, parou e voltou-se para o velho olhando-o fixamente, como se estivesse pensando numa resposta adequada, ou então, quem sabe, avaliando a proposta recebida, que, convenhamos - pensavam os espectadores involuntários daquele leilão improvável -, era muito boa... Era muito dinheiro por um cão.
O inusitado daquele leilão repentino chamou a atenção dos demais caminhantes do calçadão que, pararam ao redor do grupo de parentes do ancião e demais curiosos, todos já especulando se o dono do cachorrinho iria ceder às ofertas efetuadas pelo velho maluco, que queria porque queria comprar o cãozinho muito simpático, mas que não valia todo aquele dinheirão que o velho estava oferendo ao babaca que estava parada na frente dele, de boca aberta segurando uma guia com um cão atado à ponta.
O homem respirou fundo, olhou para o cãozinho que, sentindo a tensão que sufocava o ambiente, já não balançava a cauda em forma de penacho e estava encolhido aos pés do dono, quieto, como que esperando o desfecho do seu destino; depois, olhou para o velho que o encarava de volta com um sorriso cínico como se pensasse - “ele vai ceder... é tudo uma questão de preço...tudo está à venda, ainda mais um cachorro” - e fez uma pergunta muito estranha para o maluco que insistia em comprar o seu cãozinho:
-Senhor!!! O senhor por acaso tem um amigo? – o velho retrucou – Amigo? Tenho vários...! Dezenas! Centenas, até! Por que a pergunta, macho?
O homem levantou as duas até a altura do peito, depois juntou os dedos “indicador” e “maior de todos”, balançou-os fazendo uma mímica de “reticências” e falou - O senhor deve ter “amigos”... “Amigos” todo mundo tem... – e olhando bem dentro dos olhos do velho, como se estivesse perscrutando a alma do velho, depois bateu no peito e continuou – Eu estou perguntando se o senhor tem um AMIGO DO PEITO...! AMIGO messssmo...!!! Com letras maiúsculas! Um amigo de VERDADE!
-Ôxente! É claro que eu tenho UM... Um amigo de VERDADE! AMIIIIGO... Amigo MEEEESMO! Compadre Bernardino! Home macho! De confiança! Pau prá toda obra... Nunca faltou com a palavra... Nunca faltou comigo! Por que a pergunta? – o homem ficou sério, quase ameaçador, e perguntou:
-Esse, esse seu... AMIGO? O senhor venderia ele?
Os parentes do velho correram para socorrê-lo que, engasgado de indignação, respondeu tossindo e puxando fôlego:
-OXÉNTE, CABRA! Quer arreliar comigo, é? FIO-DE-UMA-ÉGUA! ‘Tá pensando o quê? É CLARO QUE NÃO! Num tem dinheiro no mundo que me faça VENDER um AMIGO, o Compadre Bernardino... Ôxe! Que desaforo é esse, cabra!!!
O homem sorriu satisfeito com o resultado da pergunta e respondeu:
-Pois é, senhor! Eu penso exatamente como o senhor. Aliás, temos a mesma reação contra alguém que faz uma pergunta desse tipo.
Mansamente, o homem chamou o cãozinho que, resoluto, levantou-se de um salto; ergueu a cabeça, empinou a cauda em forma de penacho, olhou para as pessoas que assistiam ao pequeno imbróglio como se, com os olhos negros e brilhantes quisesse dizer:
“Viram? ESSE, é o meu amigo!” - e saiu trotando... quem sabe, até orgulhoso de ter um AMIGO de verdade.
Lá no horizonte, onde o mar se encontra com o Céu, a Lua Cheia, esplendorosa e prateada, surgiu por detrás de uma nuvem que os caprichos da natureza moldaram com um perfil inusitado...
Muitos turistas que assistiam ao nascimento da noite enluarada, fotografaram o fenômeno comentando: “que estranho, o formato daquela nuvem cobrindo parcialmente a Lua, lembra muito um sorriso”.
João Pessoa/PB – nov/2013.