A nova Bela Adormecida
Cruzo mais uma vez os dedos antes de dormir. Uma espécie de simpatia, superstição ou algo que o valha. Não adianta. Teimo novamente em colocar n’água os peixinhos dourados que estão fora do aquário. Eles se debatem. Parece que desejam ficar do lado de fora. Luto contra eles numa tentativa desesperada para que não sufoquem fora de seu ambiente natural. Mas, ao mínimo descuido, eles saltam para fora e continuam a se debater sobre a mesa.
Acordo com a respiração comprimida. Deve ser esse o motivo do sonho. Por alguns instantes, sinto-me incomodada. Não pelo conteúdo das visões, mas pelo fato de que elas se repitam, toda noite, nos últimos anos. Passam alguns minutos. Deitada, olho para o teto e reflito sobre o significado disso tudo. Por que isso me incomoda? Talvez nem mesmo haja explicação lógica para as coisas que sonho. Esqueço.
Saio da cama. Sigo a recomendação médica: devagar para não prejudicar a coluna afetada pelos movimentos errados. Tudo igual. Cumpro os rituais de higiene. Lavo a louça da noite anterior, abro espaço para a mesa do café. – O jornal está de novo aqui em cima. Detesto isso. Coloco as roupas na máquina, enquanto a cafeteira faz seu trabalho. Bendita tecnologia que me dá alguns minutos! Calço os sapatos.
Acordado desde antes, Martin já realizou os seus próprios rituais. Fez a barba, ainda de cuecas e chinelos de dedo, sentou-se à cabeceira da mesa da cozinha para ler. Depois, ficou em frente ao computador atualizando as “últimas novas”. Escreveu um resumo das principais notícias. Organizou as sentenças. Publicou uma nova postagem em seu blog. Imprimiu algumas cópias para distribuir entre os seus colegas de trabalho, elas falavam sobre as regras da crase.
Nesse intervalo, não de tempo, mas entre o que um e o outro fazia, chamo Martin para tomar café. Ele demora a vir. Hoje ele não está legal. Está com aqueles olhos esbugalhados, característicos em seus piores dias de humor. Faço de conta que não percebo. Rumino conversas corriqueiras com torradas integrais e café preto. – Então tá. Te cuida. – Tchau. Quando me viro, a porta já se fechou. Esqueço.
São cinquenta passos até o trabalho. Talvez nem isso. Abro as portas. Desarmo o alarme. Percorro o espaço. Tudo ok. Beethoven e eu trabalhamos. E-mails, telefonemas, papéis, pessoas: – Menina, como você aguenta escutar essa música tétrica? Pela janela, lá fora. As horas passam devagar até ao meio-dia. O almoço é sempre rápido demais. Retorno. E-mails, telefonemas, pessoas. Lá fora. Esqueço.
É noite, quando chego à universidade. Escadas, colegas, professores, teorias, debate. – Tudo o que eu queria era erguer as pernas um pouco. Tomo o ônibus na última parada. Está frio e eu não pude pegar um casaco em casa. Espero. Dentro do transporte todos estampam semblantes cansados, sorrisos amarelos. São quinze minutos até a chegada. Aproveito para conversar com a bibliotecária.
Passo a chave na porta. Martin está no sofá. Ele lê e assiste TV. – Oi. – Oi. Pra que tem telefone se não atende? – Eu o desligo durante a aula, não ouvi tocar. Tenho fome. Degusto conversas corriqueiras com leite e flocos de aveia. Estico as pernas no sofá. Os olhos de Martin já melhoraram, estão um pouco vermelhos apenas.
Louça na pia, escova de dente, chuveiro, camisola. Na cabeceira, Dom Quixote mata os seus dragões e sonha com Dulcinéia de Toboso. Espero. – Já faz tempo que eu e Martin... O barulho do computador não me deixa dormir direito. Esqueço.
Arrumo as cobertas. Aperto o travesseiro entre os joelhos. Esta noite, não vou cruzar os dedos.