Toda felicidade da tristeza
Aguinaldo era um cara estranho. Ele tinha três pernas e dois umbigos. Elas eram paralelas, e a do meio que fazia o apoio para as outras duas darem o passo. Estava em casa muito bem acompanhado de duas garrafas de vinho e meia de rum. Projetava um filme mudo numa parede mofada e ouvia Bach para celebrar a gloriosa noite de sábado. Trim Trim. A campainha interrompeu a paz. Não foi o suficiente para ele se mexer. Trimmmmm. “Sei que você esta aí. Abre a porta. Tenho fumo e cerveja”, disse Ângela da janela, da onde via uma sombra na sala. “Por favor...” Diante de tal apelo a porta se abriu. “Você entraria sem o fumo e a cerveja.” “Não vamos transar.” “Justifica o fumo e a cerveja.”
Ângela era uma mulher especial. Ela tinha quatro braços, um rabo e três tetas. A terceira ficava no centro, um pouco acima das outras duas. Com três braços ela pegou uma lata, um copo de rum e outro de vinho. O quarto alisava o próprio rabo. “Cuidado com o tapete. Quanto mais molhado mais ele fede.” “Você não limpa este lugar a quanto tempo?” “Não gosto da idéia de ser limpinho. Nunca conheci alguém limpinho que prestasse.” “Você é muito ranzinza.” Ele acendeu o fumo e se voltou para a parede mofada. Ela sentou no sofá do canto. “Precisamos escutar e ver isso?” “Não, você pode sair, mas não vai levar o fumo e a cerveja.” Ela ficou.
Foram dez angustiantes minutos de “Um Cão Andaluz”. A filme acabou mais a música continuou tocando. Ângela largou um dos copos e o rabo e com dois braços começou a bolar um baseado. “Se você trocar esta música e me escutar talvez a gente transe.” Quem precisa de um argumento melhor que este para fazer a vontade de uma garota? “Sobre o que você quer falar?” “Nada.” Os dois fumaram e beberam por um tempo reclamando da vida. “Nos dias de hoje uma pessoa não pode escolher não fazer nada. Tem que produzir, produzir, produzir...”, dizia ela. “Cansei de caras confusos e indecisos. Só quero relaxar. Você sabe do que estou falando né?! Não vou acabar que nem a Deise.” “Claro, entendo.” Para ele as frases não faziam muito sentido.
Um momento para reabastecer os copos de vinho e a maconha fazer efeito. “Andei lendo algumas coisas sobre Freud e Hobsbawm. Se você pensar bem, eles explicam muito sobre nosso tempo”, disse ela. Aguinaldo estava em algum lugar entre o psicótico e o atemporal. “Tem gente que ganha a vida tentando explicar estes caras.” “Os problemas da nossa sociedade estão centrados nas relações sexuais mal estabelecidas e a falta de consciência da história. O que estou tentando dizer é que nossa decadência é fruto das nossas relações sociais estereotipadas. Depois você acaba como a Deise e nem sabe como aconteceu.” “Com certeza.” “É um processo de degradação do indivíduo que começou com o fim do iluminismo francês.” “Absolutamente.”
Depois de fumar e acabar com o que tinha do rum Aguinaldo só pensava em sexo com três tetas, quatro braços e um rabo. Dava para ver a impaciência no seus olhos vidrados nos peitos de Ângela. Ela já não sabia mais o que falar, e seus pensamentos não iam numa direção diferente do dele. Seu rabo balançava para cá e para lá suavemente. Os minutos de silêncio entre os dois foram ficando cada vez mais longos. Ele levantou e deitou no sofá enrolando as pernas entre o rabo dela. Os dois ficaram por ali uns minutos e depois subiram para o quarto. Ângela acordou cedo, arrumou suas coisas, pegou duas latas que ainda estavam na geladeira, uma ponta e foi embora.