Garotos Normais Não Têm Diários
Quando eu tinha 10 anos e ainda fingia acreditar no Papai Noel, eu pedi que ele me desse de natal um diário. Isso porque eu tinha visto minha colega de classe escrevendo um, e a ideia me pareceu interessante.
Talvez, por eu ser filho único, me faltasse alguém com quem conversar e eu acabava inventando modos de expor meus pensamentos infantis. Passava horas no banheiro conversando com o garoto do espelho (que era eu, mas que eu sentia que era outra pessoa), ficava horas sozinho no meu quarto conversando com amigos imaginários...
Minha mãe chegou até a acreditar que eu via espíritos e que eles falavam comigo, porque as conversas não eram contínuas, faltavam sempre pedaços no meio, como se eu realmente estivesse conversando com alguém que ninguém mais conseguia ouvir:
- Oi, tudo bem com você? ...Sério, e o que aconteceu? ... Não acredito!
Era tão estranho que mamãe começou a ficar realmente preocupada e me enfiou em uma psicóloga, que me entendeu menos ainda:
- Então você vê uma pessoa no seu espelho? - não lembro como ela se chamava, a psicóloga, mas lembro que me irritava o modo como ela falava comigo. Usava um tom de voz agudo e cantado, extremamente exagerado, transparecendo uma falsa euforia. Hoje sei que ela usava esse tom porque eu era criança e ela achava que ia me conquistar sendo superhiper simpática ou algo do tipo...
- Sim. - eu respondia simplesmente.
- E como ela é? Diz pra tia!
- Igual a mim.
- Mas não é você?
E eu balancei a cabeça pela milésima vez dizendo que não.
- Então quem é? A tia ta curiosa!
- Não sei... As vezes eu acho que sou eu, mas não parece que sou eu.
Ela anotava tudo. Depois de algum tempo achou que eu tinha múltiplas personalidades. Era só uma forma de dizer que eu era estranho, mas minha mãe tinha lido em algum lugar que isso podia ser indício de psicopatia e ficou apavorada. Então eu parei de conversar sozinho, pelo menos na frente dela.
E foi aí que surgiu a ideia do diário.
Se eu não podia falar, ao menos poderia escrever. E se o diário tivesse cadeado, ninguém ficaria sabendo o que eu escrevia, e eu poderia dar vida novamente aos meus diálogos com seres imaginados, ou melhor ainda, podia escrever meus pensamentos diretamente.
- O que acha? - perguntei ao garoto do espelho. E ele me respondeu que era uma grande ideia, mas que mamãe ia querer saber o que eu escrevia e que, se eu não mostrasse, ela ia achar estranho e ia procurar a psicóloga chata de novo.
Por isso, eu falei com meu pai.
- Papai, você acha que o Papai Noel ia ficar chateado se eu pedisse dois diários?
Meu pai tirou os olhos do notebook e sorriu pra mim.
- Acho que não... Mas pra quê você quer dois diários, Vinícius?
Eu gostava quando papai me chamava pelo nome. As outras pessoa só me chamavam pelo apelido: Vini. Não que eu também não gostasse de Vini, mas me sentia mais especial como Vinícius.
Sorri de volta pra ele.
- Porque o primeiro vai acabar rápido. - menti. Na verdade eu ia usar um para mostrar a mamãe quando ela pedisse e o outro para ninguém ver além de mim.
Meu pai riu da resposta.
- Mas você não acha que diário é coisa de garota?
Aquilo me pegou de surpresa. Minha colega de classe me disse a mesma coisa quando eu disse que também começaria a fazer um diário. Eu não entendia porque diários eram "coisa de garota".
Quando perguntei isso a ele, papai apenas balançou a cabeça e soltou um "Deixa pra lá", mas eu era teimoso e queria saber. Ele demorou para responder e até ficou meio encabulado depois. Ficou dando desculpas do tipo "Ah, quantos garotos você vê escrevendo diários?" e "As meninas é que geralmente gostam dessas coisas", mas ainda não tinha respondido a pergunta. Eu não entendia por que ele não queria que eu tivesse um diário.
Foi aí que papai soltou a resposta que eu sabia que era a verdadeira, mas que doeu muito mais quando ele falou.
- Sei lá, Vinícius... É que garotos normais não têm diários, só isso.
Então eu fiquei calado durante muito tempo. Ele percebeu, mas não teve coragem de falar mais nada e voltou a trabalhar no notebook.
No fim, acho que todos nós concordávamos em uma coisa básica:
Eu definitivamente não era 'normal'.
Quando o Natal chegou, eu já não sabia ao certo se o "Papai Noel" ia me trazer o que eu tinha pedido ou se inventaria uma desculpa para me dar outra coisa. Quando vi uma caixa grande demais para conter apenas dois diários com o meu nome na etiqueta, perdi parcialmente as esperanças.
- Que legal, um videogame! - eu me forcei a sorrir e a parecer feliz. Embora o presente fosse muito bom, não era exatamente o que eu queria.
- Gostou? - eu fiz que sim com a cabeça - Mas não acabou ainda não, viu? Esse foi o meu presente, mas o Papai Noel na verdade mandou esse aqui...
Papai tirou do pé da árvore um embrulho menor, que parecia conter um livro. Meus primos ficaram em volta de mim, curiosos, pensando no quê seria mais legal do que um videogame, sendo tão pequeno daquele jeito.
- Abre, abre! - eles gritavam, mas nem precisava. Porque assim que eu vi o embrulho eu soube o que era e voei pra cima dele para abrir.
Só tinha 'um' diário, mas foi o suficiente para fazer meus olhos brilharem de alegria. Ele era simples, preto, de capa dura e com um pequeno cadeado. Vi que minha mãe estava me observando e minha felicidade diminuiu um pouco. Só tinha 'um' diário... e eu não poderia escondê-lo dela.
- É perfeito! - eu agradeci ainda assim, enquanto meus primos, agora confusos, tentavam entender porque eu tinha gostado mais de um caderno feio do que de um videogame!
Quando a festa acabou, eu ainda estava namorando com os olhos o meu novo diário. Meu pai se aproximou sorrindo.
- Nossa, você gostou mesmo, hein? - eu balancei a cabeça, sem querer tirar os olhos do caderno. - Mas, ei, eu tenho outra coisa pra te dar... Esse é segredo. - ele falou baixinho, para mamãe não ouvir da cozinha, e me entregou outro embrulho, dessa vez um embrulho de jornal e não de papel de presente.
Tinha as mesmas dimensões que o meu diário e eu também soube imediatamente o que era.
O segundo diário era muito mais bonito que o primeiro. A capa era de couro fervido e flexível, em tom marrom escuro, as folhas, em vez de brancas, eram de um tom pastel e não tinha cadeado, mas era envolto por duas fitas também de couro que se cruzavam e mantinham o caderno fechado.
- Esse é pra você escrever o que quiser sem precisar mostrar para a mamãe. - meu pai piscou para mim e eu não pude deixar de rir.
- Pensei que garotos normais não tivessem diários... - eu falei ainda baixinho, e papai demorou algum tempo encarando meus olhos e tentando decifrar meus sentimentos, que eram um misto de tudo e nada ao mesmo tempo.
- É, - falou por fim - mas eu gosto de você assim, maluquinho do jeito que é.
Maluquinho... Era só uma forma de dizer que eu era estranho, mas que, pela primeira vez, soou como algo 'bom'.