Eu vi uma refrega das boas no começo do ano de 1914, que me fez achar que tinha valido a pena sofrer calado tantas e tantas décadas frente às injustiças de todo jaez no povoado onde, naquele ano, eu já era um velho zelador do maior colégio da região. Na mocidade, na mesma instituição, eu fora escravo jardineiro.
A Monarquia no Brasil já havia terminado desde 1889, mas, no auge da República Velha, a direção daquele colégio público ainda era passada de geração para geração entre membros de uma mesma família da nobreza local.
A atual diretora era Dona Guilhermina, esposa do Coronel Antero, também outro de linhagem poderosa, tão poderosa que não permitiu a implantação de uma lei vinda da capital do estado, vinda de trem e de poucas letras e que mandava todas as escolas admitirem alunos negros em seus quadros discentes primários.
A notícia dessa inclusão causou alegria no coração de muitos, mas causou também um choque nos conservadores, talvez até maior do que se fosse ainda no século XIX, logo após a Lei  Áurea. É que agora a ideia de eugenia e superioridade racial fazia escola entre muitos formadores de opinião na década de 10, isso praticamente em todo o Brasil. Prestigiavam-se acima de tudo os chamados “bem nascidos” e evitavam-se miscigenações interétnicas a todo custo, inclusive a partir do ambiente escolar. O próprio filho do casal poderoso veio da Europa em 1911 e praticamente implantou fundo na consciência social do lugarejo essa ideia excludente, que reaumentou sobremaneira o fosso social entre brancos e negros, que mal tinha sido estreitado até então.
 
A lei da inclusão negra nas salas de aula foi muito festejada na zona rural, onde quase oitenta por cento da população era de cor. Aliviou as revoltas íntimas e dessufocou a angústia de muitos que sonhavam com um futuro melhor para seus filhos, longe de qualquer resquício da dureza semelhante às que ainda eram contadas pelos ex-escravos que habitavam as redondezas.
Mas o coronel e sua esposa bateram pé firme. No colégio “deles”, negro não entraria, a não ser para servir.
 
 
As aulas já tinham começado, só para os branquinhos, quando chegou a lei áurea da educação no lugar.
Durante as pressões de ambos os lados da sociedade – da que queria e da que não queria a entrada dos escurinhos no colégio, Adamastor, um jovem engenheiro, neto de um velho abolicionista e em férias na ocasião, reuniu um grupo de pais na zona rural e os instigou a fardarem e a levarem seus filhos para a porta do colégio no centro do povoado, diariamente. Ajudaria no processo de convencimento.
E assim foi feito.
Eu ficava calado observando os movimentos acerca do assunto, mas no fundo, no fundo, torcendo para a vitória dos molecotes de cor, meus iguaiszinhos.
E ficou assim durante vários dias. Os meninos brancos chegavam todos os dias e entravam normalmente, com a diretora toda empertigada no portão fazendo rigoroso controle. Os pretinhos ficavam do outro lado da rua, no sol quente, de pé, uns com ar de revolta, outros fazendo gestos de gaiatice, mas todos olhando, calados, bem orientados.
E isso começou a incomodar os professores, os transeuntes e até mesmo Dona Guilhermina.
Guerras de papéis, debates e advogados corriam e ocorriam nas câmaras oficiais, com intervenções do padre, do delegado, de outros coronéis, mas nada de os da rua começarem a estudar.
Só depois de muita esgrima política, jurídica, retórica e diplomática, a diarquia do poder central resolveu admitir os pequerruchos da periferia, mas com uma condição, que acabou sendo aceita quase unanimemente, para não lhes atrasar mais ainda o acompanhamento escolar: eles entrariam não pela porta da frente, mas, sim, pelos lados do colégio, até o pátio lá nos fundos, onde haveria uma sala de aula e uma professora exclusivamente para eles. Alívio geral. Já estava extremamente incomodativo ver aquela imagem de crianças fardadas de pé todos os dias pela manhã em frente ao tão conceituado colégio, aguardando um veredito que lhes selaria o destino como cidadãos ou como excluídos educacionais.
Na manhã seguinte os novos alunos chegaram cheios de expectativas e apreensões para a nova experiência de vida. Os pais mostrando contentamento no rosto.
Branquinhos pela porta da frente, pretinhos pelas laterais. Pais se despediram. A diretora fechou o portão.
 
Problema.
Ao chegarem ao pátio do colégio, qual não foi a surpresa deles e até de Raquel, a professorinha designada, sobrinha do vigário e formada na capital!
Dona Guilhermina já estava lá na porta dos fundos, imperiosa, e quando estavam todos os fardadinhos prontos para entrar, ela declarou em alto e bom som, para eles e para a professora.
- Vocês estão vendo aquela grande mangueira lá no meio do pátio?
Os meninos apontaram as vistas.
- Pois é exatamente debaixo dela que vocês vão estudar! Não debaixo do telhado desta instituição honrada e tradicional!
Consternação de todos. Ninguém esperava por aquilo. Eu mesmo achava que seria usada uma sala de aula vazia no fundo do prédio, onde se guardavam as carteiras quebradas. Era a única que tinha vaga. Cheguei a limpar os móveis na véspera, alegre. Mas agora, que nada.
As carteiras foram usadas, sim, mas tive de pegá-las todas, uma a uma, e levá-las para debaixo da árvore no centro do pátio, a quase cinquenta metros do prédio. Fi-lo com tristeza, mas não tão mais triste e desapontado do que a professora que conduziria o novo grupo.
Dona Guilhermina ficou de braços cruzados, com ar de vitória, só observando o remanejamento do mobiliário, composto quase todo de carteiras velhas e quebradas.
Numa das passadas com uma carteira sobre a cabeça, eu olhei para a professora. Ela levantou o olhar. Olhamo-nos por rápidos segundos, mas ela entendeu, ou teve seu entendimento. Em seguida, ela convocou os meninos mais velhos, e, juntamente com eles, começou a me ajudar no transporte. Logo em seguida os menores começaram a levar as cadeiras, alguns deles, em dupla. Eu senti certa dignidade brotando no ar. A diretora fechou a cara. Entrou antes de aprontarmos tudo.
 
Raquel, que desde a época de aluna, já tinha recorrido a mim, na surdina, em busca de alguns conselhos sobre questões da vida e do coração, agora, já uma senhorinha, talvez relembrando alguns de nossos antigos diálogos, aproximou-se de mim, antes de começar a primeira aula, e perguntou-me mais ou menos assim:
- Seu Paulo, eu vou trabalhar aqui mesmo, no pátio do colégio, durante o ano todo, sem o abrigo de um telhado, sem poder usar um quadro negro? Isso não é uma injustiça?
Não me lembro das exatas palavras com que lhe respondi. Como personagem narrador de tantos séculos, de tantas histórias, em tantas línguas e linguagens, das mais cultas às mais populares, canetas de escritores afora, acho que já estou ficando meio desmemoriado. Mas sei que lhe incentivei mais ou menos assim (em linguagem de hoje):
- A vida nos oferece condições e circunstâncias a todo momento, nos impondo posicionamentos, decisões, atitudes. Faz parte do jogo. A injustiça existe, mas seus efeitos são relativos. Podem ser piorados ou melhorados, a depender da forma como é encarada ou vencida. Eu comecei a trabalhar aqui neste colégio em 1862, como escravo. Era um molecote. Na época, o diretor era o Seu Abílio, avô da Dona Guilhermina, que junto dele é uma santa. Você está vendo aqui esta mangueira que vai lhe servir de sala de aula? Pois é. Eu vi muitos negros serem amarrados em seu tronco e serem chibatados na calada da noite, fora das vistas dos alunos, por bobagens, como, por exemplo, por terem sido flagrados dormindo na hora do serviço. Eu mesmo apanhei amarrado nele. Mas aprendi cedo com meus antepassados a viver livre emocionalmente dentro de mim mesmo. Só apanhei uma vez, ainda mocinho, mas logo aprendi a jogar o jogo da vida. Daí em diante passei a dar meus jeitinhos aqui e ali, para não chibatear nem maltratar a própria alma com pensamentos negativos e doentios. Eduquei a mente para pensar sempre positivo. Passaram a me ver sempre de bom humor. Eu tinha de cumprir ordens e executar tarefas as mais penosas, calado, sem poder sequer perguntar nada, mas vivia em paz comigo mesmo. Eu tinha construído um quilombo no meu próprio coração, território que ninguém conhecia e onde eu era livre para sentir e pensar o que quisesse. Com o tempo e o exercício diário das incumbências várias e das virtudes íntimas libertárias, e passando a tratar bem a mim mesmo e aos outros, eu passei a ser muito bem tratado pelos outros, ainda que na mesma condição de escravo. Por isso estou vivo até hoje e gozando de muita saúde. Mas você tem outra sorte. É jovem, é branca, estudada, briosa. Naturalmente, o Carteador do jogo da vida distribuiu outras cartas para você nesta rodada existencial. Use-as com sabedoria, com dignidade.
Ela sorriu e não disse mais nada. Foi dar a primeira aula aos molecotes. E eu fui cumprir meus quefazeres.
 
Os testes circunstanciais da vida da escola ou da escola da vida ainda prosseguiram, mas Raquel sobrevivia a todos eles, com méritos, a meu ver de observador.
O maior dos testes foi já nos meados daquele ano, no inverno. Um dia, no meio da aula, caiu o maior aguaceiro, e a professora pediu à diretora que abrisse uma exceção e deixasse os meninos pretinhos estudarem, só naquele dia, dentro do colégio. Quem disse? A durona imperialista, com ar de feliz vingança, aproveitou o momento:
- É o preço da petulância! Eles estão aqui contra minha vontade! Desde o início. Você sabe muito bem disso. Sou sincera. Aqui dentro eles não vão entrar. Mande-os para casa. Não tem onde eles passarem a chuva.
Os meninos estavam parecendo uns pintinhos molhados, fardas já encharcadas, esperando o resultado do apelo da professora, que ficou decepcionada. E agora?
A diretora, coitada, uma deficiente moral, adentrou o colégio e bateu a porta dos fundos.
Os alunos e a professora fizeram menção de sair correndo, mas eu fiz sinal por uma janela, de que queria falar com eles. Apesar do forte temporal eles atenderam ao pedido de Raquel e me aguardaram. Eu fui a eles lá fora, com meu sobretudo sobre a cabeça, passei uma orientação para a jovem mestra, e deu certo.
Saí pela lateral do colégio, fui até Adamastor, o jovem engenheiro, que morava perto, contei-lhe rápido a situação, pedi ajuda. Com menos de meia hora, chegou o jovem com vários amigos simpáticos à causa dos pretinhos, e fizeram a maior algazarra na frente do colégio. A diretora, sem entender direito o motivo daquela manifestação barulhenta, foi abrir o portão principal, e ouviu o queixume generalizado da rapaziada, que exigia que a professora Raquel e seus alunos entrassem para o colégio, para se abrigarem da chuva e para que  tivessem uma sala de aula exclusiva para eles. A gritaria aturdiu todo o ambiente. De repente alguns professores que viviam revoltados com a situação, apareceram em defesa dos excluídos. Juntaram-se todos os revoltosos e foram colégio adentro até os fundos, para ver a situação dos meninos molhados. A diretora foi atrás, eu fui atrás.
Qual não foi a surpresa de todos! Sob o temporal mais medonho que já se tinha visto naquelas bandas, nem chão se via, só enxurradas para todo lado, a aula da professora Raquel estava acontecendo!, debaixo da mangueira!, com ela e todos os alunos encharcadíssimos, como se não estivesse ocorrendo nada de especial. Todos os alunos comportadamente sentados, com toda dignidade, pés dentro d’ água, rostos pingando, tiritando de frio, enquanto a professora lecionava sobre história... serenamente... Ninguém arredava.
Foi uma cena assustadora. Todos ficaram estatelados, até a diretora, que, depois de um silêncio de comoção coletiva, foi a primeira a gritar:
- Raquel! Venha! Traga seus alunos para dentro do colégio! Rápido!
Houve uma gritaria geral, de secos e molhados. Estava enfim implantada a lei áurea da educação no povoado.
 
A partir de então a turma dos pretinhos estudou protegida, dentro do colégio, com toda uma dignidade, uma dignidade construída a fórceps da sensibilização (e da estratégia). Raquel passou a lecionar mais animada, valendo-se de quadro negro e protegida sob o telhado. Contudo, não sei por quê, sempre que o tempo permitia, as aulas de história, ela fazia questão de ministrar debaixo da velha mangueira.
E assim eu descartei os últimos dias da minha rodada existencial naquele começo de século, com muito mais contentamento e com aquela sensação de dever cumprido. Dever de zelador.
 
 
 
 
 
Josenilton kaj Madragoa
Enviado por Josenilton kaj Madragoa em 20/11/2013
Reeditado em 03/01/2014
Código do texto: T4578667
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