Por tudo que eu sou

Dizem que a família é a base de tudo. Sempre concordei com isso e por isso, sempre me entristeci.

Eu fui embora de lá já faz uns 40 anos. Sinto falta mas prefiro-os longe, longe de mim, de minha paz perturbada.

Lembro dele gritando várias vezes, quando não estava batendo em João, que é mais velho que eu, que era para ele respeitar mamãe. Como assim? Ele que a agredia sempre quando bebia?

“Honra-te teu pai e tua mãe para que seus dias se prolongue na terra que o Senhor teu Deus te dá.” Êxodo, Cap. 20-12. Lembro do pastor dizendo isso pra mim diversas vezes e eu fingia que concordava enquanto em minha alma fervia de ódio dele. Se dependesse do meu ódio, Deus iria encurtar os meus dias e eu já estaria morto desde o primeiro soco que mamãe levou dele. Esse pastor não sabe de nada e quer bancar o cara de Deus, pensava comigo.

Lembro de quando eu e meu irmão éramos bem pequenininhos, de corrermos várias vezes para as casas dos vizinhos com as gavetas de facas nos braços afim de que nenhum dos dois morressem. Eu e João crescemos evitando a morte deles. Crescemos em meio ao caos, onde a morte estava sempre à espreita, esperando uma falha nossa, uma distração sequer e boom! Papai e mamãe estavam mortos na nossa frente. Faço terapia até hoje.

Por vezes, os vizinhos chegavam no quarto onde os dois se encontravam em intenso ódio e agressividade mortal para apanhar mamãe já desmaiada e inconsciente dos braços de papai que a socava contra a sua fúria.

Lembro-me de uma certa vez, tentando tirar uma faca das mãos de mamãe, que estava bêbada e tentando matar papai, ter cortado minha mão direita profundamente. Tenho a cicatriz até hoje. Eu devia ter uns 6 anos de idade.

Mas eles não se separavam, para o nosso tormento. No outro dia, mesmo em silêncio ditado pelas as ocorrências do dia anterior, nada se falava na mesa de jantar, nem na sala assistindo tv, nada.

E um dia depois, os dois já estavam conversando e rindo de novo. Angústia. Lembro de senti-la nessas horas. Isso nunca vai acabar? Pensava eu, com os meus 6 anos.

Na adolescência, como é a tradição por aqui no bairro, freqüentamos a Igreja. Os nossos amigos cresceram na Igreja ao contrário de nós, que éramos sempre vistos como a família amaldiçoada pelo álcool, pela ira, pela contenda. Crescemos nos achando no Estranho Mundo de Jack. Inseguro, medroso, traumatizado e sombrio eu vivia andando cabisbaixo como se o mundo me oprimisse. E de fato algo me puxava para baixo.

Tive depressão aos 15 anos e nem papai e nem mamãe souberam lidar. O pastor dizia que a nossa família era vítima de macumbaria e que eu devia orar por nós, para me salvar e salvar meu pai e minha mãe. João tentava me entender, mas nem eu mesmo sabia o que estava acontecendo comigo e ele só podia me abraçar carinhosamente, como sempre, me protegendo.

Aos 16, tentei o suicídio. Embora sem êxito, tenho cicatrizes no meu braço esquerdo inteiro. Com um estilete eu fui cortando o meu braço até que a dor de dentro desaparecesse e eu pudesse me distrair dela por um instante. E aprendi: o suicida não quer se matar, ele quer matar a dor dele. Só.

O pastor esteve lá em casa juntos de alguns membros da Igreja para fazerem um culto para mim, afim de que Jesus libertasse minha alma. Eu precisava me libertar era daquela casa, isso ninguém fazia. Ele pediu que eu e João participássemos das campanhas da Igreja, dessas que sempre envolvem uma “oferta especial” para Deus como sacrifício em seu altar e só assim minha família e eu estaríamos salvos do “Inimigo”.

Ao completar 18 anos eu estava melhor, embora precisasse continuar fazendo terapia e tomar remédios. Meu irmão trabalhava como eu, num supermercado como estoquista e eu era operador de caixa. João começava ficar estranho, sempre parecia muito cansado, mas de uma hora para outra ele parecia renovado, como se todo o cansaço tivesse desaparecido. Eu perguntava se estava tudo bem e ele dizia, como sempre para me acalmar e isso já era de seu costume, por ser o irmão mais velho, que estava tudo bem e que eu me preocupava demais. Eu desejava acreditar naquelas palavras, juro mesmo, mas dava para sentir a morte me assombrando nesses momentos, como se estivesse dizendo “Eu ganhei”. Eu parecia lutar contra a minha morte à todo instante a à todo instante tinha que evitar a morte de minha família, que sempre estava prestes a ser levada pelas entranhas da Senhora Mais Temida do Mundo.

Descobri uns meses depois que meu irmão estava usando cocaína, juntamente com os seus colegas de trabalho, que tinham suas vidas muito parecidas com a nossa. Mas além de trabalhar o dia inteiro, eu e João tínhamos que estudar, pois além de estarmos atrasados academicamente um ano devido as mudanças de bairro e cidade constantes que fizemos quando éramos crianças, estávamos em Agosto, prestes a se formar no Ensino Médio e João sonhava fazer Engenharia Mecânica e eu, Filosofia.

Descobri também que o Pastor da Igreja mantinha um acordo com os traficantes do bairro. Era o seguinte: o pastor não tinha grana para construir a Igreja e foi até o dono das bocas de fumo pedir ajuda, em troca ele daria os nomes verdadeiros dos “vaporzinhos” (garotos que vendem e consomem drogas) e dizia onde esses vaporzinhos moravam, pois suas mães com certeza, como mandava a tradição naquele bairro, eram evangélicas e o pastor aproveitaria das confissões delas para dizer onde os filhos delas (os vaporzinhos) estavam escondidos e assim, o dono da boca manteria o controle e o poder de sua empresa de drogas. Ótimo esquema. Deu certo.

Mamãe começava a freqüentar a Igreja e papai, ia de vez em quando aos domingos, para mudar a rotina.

Somente eu parecia desconfiar de João, pois mamãe e papai sempre estavam preocupados com as despesas da nossa casa e com quantos eu e João devíamos arcar com boa parte delas, sobrando sempre, quase nada para gastarmos com nós mesmos. E eu entendia João, embora não gostasse da idéia nem do ato, pois achava autodestrutivo, entendia o porquê de ele usar a droga. Eu me enfiava em livros e ele que não tinha o hábito de ler se enfiava nas drogas. Cada um com o seu vício né?

Um dia, voltando bem tarde da escola passei na sala de João para irmos juntos pra casa. Ele pediu que eu fosse embora pois ele iria demorar um pouco com alguns trabalhos que tinha que resolver com o grupo dele em História. Eu senti a morte naquele dia. Ela não me acenava, nem me dizia nada: apenas me fez sentir tão próxima que não precisava dizer nada. Então eu senti. Minha sombra havia se tornado uma neurose? Pois é, resolvi ir pra casa e evitar pensar demais e fui.

Chegando em casa, mamãe assistindo novela no quarto dela enquanto papai tentava dormir mesmo ao som alto da tv, eu fui para o meu quarto e deixei a mochila cheia de obrigações (a mais) em cima da minha cama. Fui jantar. Coloquei o meu prato com comida no microondas e fui para o computador. Meu celular tocou. Medo. Novamente a senti. Ao telefone, alguém dizia que João havia sido baleado nas costas e que podia morrer a qualquer hora. Sai de casa na hora, dando para ouvir a voz de mamãe no quarto perguntando para onde eu iria. Não respondi e fui. Meus pais se soubessem naquela hora eram capazes de bater no meu irmão mesmo baleado. Fui até lá e o Samu também já havia chegado. Entrei dentro da ambulância e fomos. Eu e João, com os seus olhos entreabertos, inconsciente. Não sabia se pedia a Deus para não deixá-lo ir ou se pedia à Senhora Mais temida do Mundo que não o levasse agora, pois ele era a única pessoa que cuidava de mim.

Fiquei até de manhã cedo no Hospital. Mamãe e papai apareceram duas horas depois que eu havia chegado por lá, pois ficaram sabendo pelos vizinhos que João havia sido baleado. E eu só sabia chorar por debaixo dos meus óculos lendo disfarçadamente o meu livro.

Não dormi um segundo sequer, pensando em tudo que já havia me acontecido.

Eu, no canto, do outro lado da sala de espera, olhava para aqueles que deveriam cuidar de nós, para que tivéssemos uma educação decente, uma vida decente para que tivéssemos um futuro decente. E lá estavam eles, do outro lado, falando que João era irresponsável e que merecia uma surra. Nunca esqueci de mamãe dizendo “Ainda bem que eu pedi ajuda ao pastor, pois só assim ele vai poder aprender algo certo na vida.” Choque em minha mente. Mamãe sabia? E não me dizia nada? Não dialogava comigo e nem demonstrava preocupação alguma? Como mamãe pode ser tão fria? Eu lá em casa, todos os dias sofrendo sozinho e ela sabendo de tudo não me ajudava?

O médico chegou dizendo que tentou de tudo mas não teve êxito. A bala havia perfurado o pulmão e eles tentaram de tudo. Só consegui abaixar a cabeça e dizer para aquela mulher que nunca mais a vi em minha vida, pois desejo que ela apodreça aqui na terra “Parabéns, você matou o meu irmão com a ajuda de um pilantra reforçada pela sua burrice e sagrada e devota ignorância. Agora o meu irmão está morto, quem vocês vão destruir agora, eu? Pois estou indo, e não me procurem, pois torço que os dias de você é que estejam contados aqui na terra, porque tudo que tenho por vocês é ódio. Só ódio.”

E nunca mais vi mamãe nem papai. Me disseram que eles moram no mesmo bairro, na mesma casa. Eu estou longe de tudo que me fez mal, mas longe fisicamente pois a Senhora Mais Temida do Mundo continua aqui, cozinhando comigo, passeando comigo, transando comigo, vivendo comigo. Só me resta morrer para que morra também essa minha esperança: que os meus pais se redimem perante toda a dor que me causaram, por tudo que eu me tornei sem amor e amparo, por tudo que eu sou hoje.