CAMINHO DESCONHECIDO
                                                                                 
 
Sou a primeira a entrar.

- Deixa essa ansiedade, dizia Eudoro. Todos irão chegar na mesma hora. Não precisa ter pressa.

Mas eu tenho. Férias. A primeira. Viagem sozinha, sem marido, sem crianças. E sem remorso. Nunca tinha acontecido. Minhas saídas de ônibus eram tendo Eudoro no volante e sob o olhar fiscalizador dele.

Nem sei quando a ideia me surgiu. Fui amadurecendo, antes de contar pra meu marido. Ficou furioso.

- Sozinha, viagem, hotel, nunca. Nõao mesmo.

Falava como gago, de tão zangado. Mas com choro, insistência e carinho, consegui.

Sentada, fico olhando a movimentação dos passageiros na rua. Penso como será a história cada um. Concentrada nisto, não vi a pessoa entrar e sentar-se a meu lado. Somente me dei conta quando senti o calor do corpo colado ao meu, mas não me atrevi a olhar. Enfim a partida. Um abano para o Eudoro.

Vou olhando para a rua, cuidando os carros, vendo as casas, as pessoas, pensando como seria bom ficar num hotel, ser servida como uma dama. Fico durante tempo brincando com as fantasias, até adormecer.       

De repente, o pesadelo. O ônibus rolando no penhasco, os gritos, os corpos, objetos se misturando, o sangue quente e o silêncio.

Acordo com a sensação de que alguém está me jogando água. Tento gritar que pare com a brincadeira, que me sinto sufocar, mas a voz não sai. Julgo estar sonhando. Lembro-me que viajava, feliz, até sonhar com o acidente. Mas as ideias se confundiam. Sinto que sou puxada. Meus pulmões parecem estourar. Vejo-me fora da água. Umas mãos fortes apertam meu tórax, uma boca quente injetava-me os pulmões de ar. Chorando, tossindo, expelindo água em jatos, tento me mexer. A dor me toma por inteiro. Procuro ver, mas tudo é escuro.


A mão percorre meu corpo, apalpa e vai me arrancando a roupa. Depois chega ao meu rosto, faz uma carícia. Somente então a voz ao meu ouvido, num hálito quente, diz que tudo está bem, fique calma, não se mexa, pode haver fraturas. Pergunto quem é, o que aconteceu, onde estou. Vai me dizendo que o ônibus caiu num precipício e mergulhou no rio, que sentava a meu lado, que me segurou. De novo, o silêncio.

Quando recupero os sentidos, o dia começa a clarear. O estranho me olha, deitado a meu lado. Faço um movimentou brusco para afastá-lo e solto um grito de dor. O homem volta a pedir calma, que tudo está bem. Vou sentando com cuidado. Nua. Minhas roupas penduradas nos galhos. Pega a blusa e me estende.


- Está úmida - diz como uma desculpa.

Ajuda-me a vestir. Pergunto pelos demais. Balança a cabeça. Penso em Eudoro, nas crianças, nas férias frustradas, nas pessoas felizes que embarcaram.      
 
Vejo o estranho se afastar. Um medo terrível me invade. E se fugir, me deixar só. Grito. Ele se volta.


- Por favor, não me deixe.

Esboça em sorriso. Retorna. Pergunto o nome.

- Flávio.

Diz que precisa sondar o terreno, saber exatamente onde estamos. Não vai demorar. Fico apalermada, olhos perdidos no vazio, sem saber o que pensar, apenas a dor insistindo.

Flávio retorna. Traz frutas silvestres. Também cascas de árvore e cipós.


- Para uma tala - explica.

Vai ajeitando minha perna, imobilizando-a com perícia. À interrogação, responde que é enfermeiro. Precisamos de socorro. Ficar ali parados não resolve. Devem estar procurando o ônibus. Observo que tem os braços feridos e um corte profundo na perda.

- Nada quebrado - informa.

Põe-me de pé, mas não consigo caminhar. Ampara-me. Sinto o contato de seus músculos sob a blusa fina. Mesmo assim, tento caminhar. Não vamos longe. A dor é insuportável. Encosta-me numa árvore e faz uma cama de folhas. Ajuda-me. Depois, afasta-se novamente.


- Preciso, fazer alguma coisa – diz. E sai.

Acordo com seu toque. Traz mais frutas e água numa folha de aguapé. A noite se aproxima. Prepara uma cama de folhas também para ele. 

Acordo. Olho as estrelas. A lua é cheia. Ao meu lado chega Flávio, solícito.


-Precisa de alguma coisa?

- Preciso virar de lado. Dói-me a perna.

Ajuda-me, com cuidado. Quando vai se afastar, seguro-lhe a mão.

- Não me deixe. 
  
Amanhece. O homem ao meu lado dorme. Somente agora posso observá-lo. Enquanto faço isto, abre os olhos. Fico sem graça.


- Ia chamá-lo – justifico. - Estou com sede.

Sorri, mas vejo algo mais em seu olhar. Debruça-se sobre mim. Agora, a proximidade de meu salvador faz-me vibrar uma campainha. Fico temerosa. Dou um grito. Ele se assusta e derrama o restante da água sobre meu corpo.

- Olha. Olha, insisto, apontando para o alto.

Levanta-se e põe-se a agitar uma roupa. O helicóptero nos vê.A ambulância nos espera.

Ele tira do bolso um cartão manchado. Seu telefone é visível. Tranca-o em minha mão.
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 13/11/2013
Reeditado em 13/11/2013
Código do texto: T4569666
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