CEM DIAS SEM LAÇOS Cap. XXIII - O Impertérrito
_ Você dirige. Ok?
_ Sem problema, querido!
Era uma noite morna. Benito queria estar confortável. Vestiu uma bermuda leve, uma camiseta de malha branca e tênis. Na casa do Miguel não havia cerimônias. Sentia-se em casa. Ester mirou-o com olhos apaixonados. Ele ficava bem em qualquer traje e era bom vê-lo livre da gravata. Sorriu-lhe docemente com um intenso brilho nos olhos.
_ Que foi?
_ Você fica um gato de roupa esporte.
Ele a abraçou fortemente:
_ Você é que é a coisa mais linda do mundo. Com qualquer roupa ou e principalmente sem qualquer roupa.
Um beijo rápido, e ela disse:
_ Vamos embora que nossas últimas atividades físicas me deixaram faminta. _E piscando maliciosamente um olho: tenho que repor as energias para logo mais.
Já no trânsito, Benito recostou-se no assento do passageiro e fechou os olhos. Ester sorriu feliz e agradecida. A maioria dos maridos de suas amigas não confiava na capacidade delas para dirigirem. Faziam piadinhas de mau gosto na presença delas quando nas rodas de amigos. Benito nessas ocasiões a elogiava. Dizia-se mais seguro com ela ao volante do que consigo mesmo. Ela sabia o quanto essa sua prosa era exagerada. Ele era um exímio motorista, cônscio e seguro, mas o seu ego se inchava perante os olhos invejosos das amigas. Sabia-o cansado, com a cabeça fervilhando de problemas e frustrações. Era um homem fechado com relação aos seus assuntos de trabalho, ela não sabia se pela sua natureza mesma ou se para poupá-la dos mesmos aborrecimentos que o afligiam. Ela acompanhava pela imprensa local os insucessos da polícia no combate ao crime. Ele procurava ser o mais transparente possível o que mitigava a animosidade da dita população de bem, cuja opinião era a única que interessava a ele. Tal pensamento levava o Dr. Benito Nunes a cooperar o máximo possível com a imprensa, o que levava sua cara redonda todas as semanas às páginas policiais.
Na manhã daquele mesmo dia ele lia, como de costume, enquanto tomava antes dela o café da manhã, um livro intitulado Inquérito Policial, de um certo Manoel Messias Barbosa. Quando ela se sentou à mesa ele já estava ao celular caminhando de um lado para o outro, da sala para o quarto, do quarto para a sala. Ele tinha deixado o livro sobre a mesa, o qual estava aberto na pagina 19. O último parágrafo do primeiro capítulo estava grifado a lápis. Ela não pode deixar de ler a última sentença: “tornando a mídia um corregedor impertérrito sempre pronto a dar publicidade de seus erros e quase nada de seus acertos.”
_ Que quer dizer impertérrito? Perguntou ao lembrar-se do vocábulo que ficou rondando sua cabeça o dia todo.
Ele abriu os olhos fitando-a com uma cara divertida:
_ Algo assim como eu.
_ Bonito ou gostoso?
Ele riu o seu riso largo:
_ Não! Destemido.
_ Impávido colosso?
_ Exatamente!
_ É assim mesmo que eu te vejo. Não se aterra nunca. Preciso aprender isso com você. Onde é que arranca tanta determinação?
Benito calou-se pensando. Tinham seis anos de casados e ela ainda tinha perguntas sobre a pessoa dele. No entanto, ele que aprendera pelos caminhos sinuosos dos inquéritos, nos inúmeros interrogatórios que conduzira, a perscrutar a alma humana, também vez por outra esbarrava com facetas estranhas daquela esfinge que tinha o dom de colocá-lo no bolso.
_ Você! Ele disse por fim quando o carro já entrava no bairro de Miguel.
_ Que tem eu?
_ Você é minha fonte de determinação. Tenho que ser um impertérrito para merecer você.
Ela fez uma mesura cheia de graça como quem quisesse dizer que não acreditava. Mas Benito sabia que aquela era a sua maior verdade.