VARONIL, O VARÃO.

Quiel, ou Quielzinho, eram os carinhosos apelidos com que os parentes e os mais íntimos se referiam a Ezequiel.

Ezequiel Varonil Pentecostes era o nome com que fora batizado num córrego perto de sua casa. Mergulhado até o pescoço na água servida que vinha da nascente, morro acima, recebera o nome de batismo para que todos o aceitassem como um novo irmão de fé.

Ezequiel era o único filho varão de uma penca de seis, sendo, cinco, mulheres. Seus pais e, por conseguinte, toda a família, eram crentes fervorosos e, à medida que ia nascendo, a filharada recebia nomes de personagens bíblicas.

Assim, a família de Ezequiel se completava com Sara, a mais velha, Débora, Sifrá, Eliseba, Tirzá e Miriã, a mais nova. Quiel nascera por último, de uma gestação complicada e de um parto doloroso, que teve de ser solucionado através de uma cesariana de risco.

Seu Josiel era um bom chefe de família. Compenetrado, moralista, rígido consigo mesmo e com seus dependentes, conhecido no bairro como um homem de moral arraigada, sério nas suas atividades familiares e sociais.

Na verdade, Josiel era um patriarca e, dentro da sua tribo, como era costume entre as personagens do Antigo Testamento, as mulheres da família Varonil Pentecostes pouco opinavam nas lides da administração familiar, cabendo-lhes nada mais que as tarefas ligadas à manutenção da casa, cuidados com os objetos familiares e, principalmente, da cozinha, do tanque e do ferro de passar roupas.

A rigidez de Josiel tinha ranços de um ritual. O relógio era um verdadeiro algoz e, tanto na faina diária quanto na vida pessoal, os horários listados em uma folha de papel A4, pendurada na cozinha, davam o ar de quando, onde e por quem, essa ou aquela atividade devia estar sendo realizada...

A mulher, Jarede, era de uma submissão muçulmana, dependente da opinião do marido, desde o tipo de penteado à camisola, passando pela indumentária com que se apresentava na rua ou nas reuniões habituais.

Não raspava o sovaco, não raspava as pernas e não usava pintura. Calças compridas! Isso, nem pensar! A liberdade no vestir se resumia a uns vestidões de mangas até o pulso, compridaços, escondendo os tornozelos. Sapatos de salto alto? Só os do tipo Anabella para baixo...

Taufik, um sírio ismaelita que tocava uma loja de quinquilharias importadas do Oriente, vivia de olho em Jarede, fascinado pelo seu comportamento, jurando, de pé junto, para si mesmo, que tinha certeza de que ela usaria burka com a maior facilidade e que seria a mulher dos seus sonhos. Além disso, tinha a fama de fazer o melhor quibe e o melhor charutinho de repolho que já comera no Brasil.

Numa festa coletiva, onde toda a rua se mobilizou, Taufik fora apresentado à família Varonil, cuja residência ficava à uma quadra da sua. A festa se deu em comemoração a uma rede de esgotos que o governo havia se dignado a instalar acabando, de vez, com a maldita vala que corria a céu aberto, exalando cheiro fétido de água apodrecida misturada com dejetos domésticos.

No meio da festa apareceu o Deputado Nehemias, político do bairro e candidato à reeleição, por cuja interferência, e por ser do mesmo partido do governador, conseguira essa façanha que fora cumprida bem às vésperas da campanha eleitoral. Nehemias, aproveitando-se do ajuntamento, tomou a palavra e, entre um croquete e outro, deitou falação...

Josiel e Jarede tomaram lugar em uma mesa em que, ao lado, estava sentado o sírio do "Bazar Oriental". Um conhecido comum cuidou das apresentações. Trocaram ideias e, como Josiel tinha interesse em conseguir um punhado de areia das margens do Rio Jordão, imaginou que Taufik pudesse auxiliá-lo nesse mister. Para facilitar as coisas, ofereceu-lhe uns quibes e charutinhos de repolho que a mulher era especialista em fazer. No momento apropriado, falaria sobre seu interesse em ter areia da Terra Santa.

O sírio, um solteirão inveterado, tinha um medo danado de casar e ser traído. Lá na sua terra, essas coisas são muito raras de acontecer, pois as mulheres ficam quase que reclusas e dificilmente um homem que não o próprio marido, tem a oportunidade de botar olho gordo nela. Ainda por cima, tinha o recurso das chibatadas que era um aviso para as mulheres ficarem longe dessas sacanagens tão comuns do mundo ocidental.

Durante o clímax das escaramuças entre Síria e Israel, temendo que algum morteiro caísse sobre sua cabeça, Taufik tratou de vender as posses que herdara da família. Juntou uns tarecos e saiu, em fuga, lá para as bandas do Egito. No país dos faraós aprendeu a conviver com as pirâmides, camelos, múmias e esfinges mas, também conheceu o hábito dos xiitas partidários da infibulação, como garantia da fidelidade conjugal. Mergulhou de cabeça nessa idéia e passou a ser um entusiasmado defensor...

Lá no fundo das suas fantasias, Taufik ficava imaginando Jarede como sua mulher, vestida de odalisca, insinuando-se para ele na dança do ventre. Enquanto isso, vislumbrando um caudal de delícias, mergulhava no fumo de um surrado narguilê. Esperaria até o fim da vida para pedi-la em casamento, caso enviuvasse de Josiel.

Três vezes por semana, à noite, Josiel se vestia com o melhor terno e, engravatado, com os sapatos lustrosos, ia, com o Livro da Lei embaixo do sovaco, assistir aulas na “Faculdade de Teologia”. Sonhava em se transformar em licenciado, mestre e, finalmente, doutor em Teologia, mesmo tendo parado seus estudos mundanos no primeiro ano do Ensino Médio.

Jurou nunca mais voltar à escola por se sentir injustiçado. Desconhecia a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e foi antecipadamente reprovado, por ter, na Secretaria da Escola, nos Diários de Classe, registros de que suas “ausências às aulas” haviam ultrapassado os 25% permitidos. Sentindo-se injustiçado, nunca mais voltou a ver uma sala de aulas.

Jarede era filha de um sapateiro que freqüentava a mesma congregação religiosa de Josiel. De tanto se encontrarem, nos dias de culto, acabaram se sentindo atraídos e o namoro fechou, mesmo, quando o pastor Moisés, carinhosamente, abençoou-os, dizendo que aquele sentimento entre os dois era uma verdadeira “Unção do Senhor”.

Não demorou muito, já noivos, todo o dia naquele esfrega-esfrega natural de todo mundo, o safado do demônio acabou levando os dois a uma esfregadazinha mais funda e... Pronto! Jarede, toda acanhada, confessou a Josiel que suas regras não vieram, naquele mês.

Josiel, muito sem jeito, tomou coragem e foi conversar com o pastor que logo deu a sua santa solução: Ca-sa-men-to, meus filhos! Ca-sa-men-to!...

Pronto! Depois disso, não deu outra coisa! Os dois se casaram. foram abençoados por todos da congregação e o pastor Moisés não resistindo ao pecado da gula, acabou tendo que ir parar no Pronto Socorro de tanta carne de porco que comeu no jantar oferecido pelos parentes dos noivos...

Foi assim que, onze meses depois, nasceu Sara. Menina saudável, rechonchuda que só fazia três coisas na vida: Mamar, dormir e berrar.

Como, naturalmente, o esfrega-esfrega entre um casal que mora junto e tem uma cama no quarto é coisa que não cessa, vieram as outras meninas, sucessivamente, uma por ano.

No sétimo ano, com a devida permissão do pastor, sabendo da nova gravidez de Jarede e, cansado de tanto ver calcinhas penduradas na corda, no quintal, resolveu que cuidaria de fazer uma vasectomia o mais rápido possível.

Semanas depois, lá estava Jarede, na sala de parto, acabando de ser costurada após uma cesariana complicada, num quadro de pré-eclâmpsia. Josiel, todo preocupado com o estado da mulher, não percebeu que o molequinho que acabara de nascer estava ali, ao lado, ainda sujinho, mas com um “piruzinho da silva” apontando para os quarenta e cinco graus e liberando a primeira mijada da vida. As enfermeiras desabaram a rir, maliciosas, apontando para o piruzinho atevido.

Josiel era demonstrador de um laboratório farmacêutico e passava o dia visitando consultórios médicos e hospitais, tentando empurrar algum medicamento novo para médicos desinformados usando e abusando, para isso, das conhecidas “amostras grátis”. Seria um milionário se pudesse ganhar um só real a cada vez que fosse alvo de imprecações das pessoas que, irritadas, aguardavam sua vez de ser atendidas. Os pacientes quase morriam de raiva, quando Josiel entrava no consultório do médico com aquela valise preta mais gorda do que barriga de hipopótamo. Os xingamentos e as maldições eram sempre acompanhadas de um belo e sonoro “filho da puta” mental.

Ezequiel, por conseguinte, quase ou nada tinha a ver com o pai que se esfalfava de andar com sua valise. Era cuidado pela mãe e supercuidado pelas irmãs. Assim, vivia entre mulheres, entre coisas de mulheres e, entre assuntos de mulheres.

A ausência paterna somente encontrava tempo para se redimir, aos sábados e domingos, quando Josiel se livrava dos compromissos com a congregação. Aí, em casa, trocava alguns afagos, via um pouco de televisão e, pumba! Ferrava no maior sono da paróquia deixando a família falando sozinha!

Assim cresceu Ezequiel e, de um certo tempo para cá, vivia em companhia das meninas, remexendo seus guardados e, principalmente, devorando umas revistas de histórias em quadrinhos que tinham, como tema, histórias de amor.

Até aí, nada de mais, nem de menos, pois histórias de amor tem, normalmente, como protagonistas, rapazes e moças, homens e mulheres, velhos e velhas.

O fato curioso é que Quielzinho, já aos treze anos, quando olhava as revistas, sentia uma coisa esquisita lá dentro dele; uma espécie de atração por aqueles moços bonitos que, normalmente, seduziam as moças.

Essa atração, Quielzinho guardava para si próprio, como se fosse uma espécie de segredo muito íntimo que não era para ser revelado a ninguém a não ser que fosse a um daqueles moços da revista. Todavia, isso era impossível não conhecia nenhum deles.

E assim, o menino cresceu sob o abrigo carinhoso do elemento feminino da casa e, aos poucos, parece que suas glândulas iam se amoldando aos influxos mentais que preenchiam seus ambientes e principiavam a desenvolver reações de distanciamento do sexo oposto.

A rigidez paterna se fazia valer impedindo que qualquer manifestação mais ostensiva de Quielzinho pudesse revelar alguma fresta da tendência emergente. Afinal, todas as fichas de Josiel estavam apostadas nele, com vistas à perpetuação do nome da família “Varonil Pentecostes”. Também, na cabeça do pai, esvoaçava a figura de Ezequiel pregando para uma assembléia embevecida pela sabedoria; um possível liame genético, coisa de herança mesmo...

O tempo passou e Quielzinho, agora Ezequiel, já completara os seus dezenove anos e o ensino médio. Induzido pelos pais fora instalado em um apartamento na Zona Sul do Rio, para morar durante o tempo em que estivesse naquela cidade, matriculado na Faculdade Samaritana, no curso de Engenharia de Programas.

Passaram-se os anos e Ezequiel evitava viajar para visitar a família na cidade distante do interior de Minas. Sempre se comunicava através de e-mail, ou pelo telefone, quando precisava de algum reforço financeiro ou para dar e receber notícias triviais.

Josiel andava ansioso para ver seu filho casado e dando-lhe aquele neto por demais esperado. Via em seu filho, o futuro varão e patriarca a dar continuidade à descendência dos Varonil Pentecostes, os quais deveriam se dedicar a espalhar pelos quatro cantos, as coisas da religião do povo de Deus.

Havia uma jovem irmã congregada que, sem dúvida, seria a noiva certa para Quiel, mulher perfeita para o lar e mãe extremada para a filharada. Já havia dado uns toques nos pais da moça e eles deram sinais de aprovação.

Estavam as coisas, assim, nesses conformes, quando as telas da TV, as rádios, os jornais e as revistas alardeavam o início do Carnaval e a agitação das Escolas de Samba, dos desfiles, dos Clubes Tradicionais, de fantasia, etc... Explodiam no Sol, no céu e no mar furunfante do Rio de Janeiro os acordes crepitantes de Satanás...

A família de Ezequiel não gostava nem um pouquinho de Carnaval, festa demoníaca e portal do inferno. Mas, nem tudo é pecado, nessa vida, e as moças que eram lá envolvidas com coisas de estilo e de moda gostavam de ver as fantasias e os enredos que se espalhavam pela Avenida, espocando no Sambódromo.

Foi aí que tudo aconteceu. Em plena noite de terça-feira gorda, os apresentadores, escrachados, da Rede-TV entrevistavam os fantasiados que passavam pela passarela, para o baile de gala que já estava começando. O famoso Gala Gay!

No exato momento em que Monique Evans, toda escorregadia no seu deboche, entrevistava um casal:

-- E você, querida? Que fantasia é essa, toda emplumada e cheia de brilhos?

-- Ahhhhh! Queeeeee-riiiiii-daaaaaaa! Você não sabe que eu venho das areias do deserto? Olhe bem para mim! Não sou linda?

-- E esse aí ao seu lado, quem é?

-- Éééééé! Meu amoooor! Esse é o meeeeeeeuuuuuu Daaaviiiiii!

-- E como é o seu nome, meu amor? O meeeeuuuu?

-- Sim! O seu!

-- Muito prazer! Betsaaaabááááá! Para lhe seeeeerviiiirrrrr!

No interior de Minas, na casa de Josiel, caiu um planeta vadio. Nibiru, Absinto, Hercólubus ou seja lá o que for...

Ao reconhecer o filho, o seu varão varonil, desmunhecando e revirando os olhos, vestido de Betsabá, Josiel deu um urro de pavor, urinou nas calças e estrebuchou, caindo morto, no sofá.

Um infarto fulminante acabou com aquele sonho de ver perpetuda a clã do patriarca Varonil Pentecostes.... O sonho acabou no carnaval...

Anunnak – 29-04-2010 – 18:22hs

Amelius
Enviado por Amelius em 08/11/2013
Reeditado em 08/11/2013
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