Entre pombos e usuários de crack

Eles estavam sentados bebendo café numa lanchonete, no centro de Curitiba, próximo do cortiço onde tentavam viver. Chamavam-se Renê e Augusto. Ambos estavam desempregados e com o aluguel do quarto vencido. Eram onze horas da manhã e não havia ninguém nas outras mesas. Do balcão, o chinês obeso, proprietário do estabelecimento, folheava uma revista pornográfica. Os rapazes haviam gasto suas últimas moedas nos pasteis que comeram antes e no café, que estavam bebendo agora, vagarosamente, enquanto conversavam desinteressados.

- Sabe, um amigo antigo me ligou outro dia. - começou Augusto- Está trabalhando num pulgueiro como esse. Apesar de tudo parecia contente, arrumou uma esposa, parece até que deu entrada num carro. Acho que ele pensou que eu me interessaria em saber disso. Mal via a hora de desligar o telefone.

- Porra, isso não é jeito de falar. Se você é amigo do cara, isso não é jeito de falar.

- Ora, larga mão de ser hipócrita, Renê. Por que razão eu ia torcer pelo sacana? Eu deveria ter ficado feliz? Supondo que daqui a uns cinco anos, eles acabem tudo. Acabem tudo porque ela descobriu que ele traía ela, e digamos, que ela taque fogo nele. Você sabe, mulheres são impulsivas. Essas coisas acontecem. Você lê jornais? Pois é, às vezes eu leio, e vou te dizer: sempre tem algum marido que enfiou uma faca no pescoço de uma mulher, ou um cara que abusava da enteada de sete anos. Como apostar numa coisa dessa?

- Não acho que você deve pensar assim. Você é muito pessimista. Veja o garoto que morreu outro dia, no acidente que você comentou. Dizem que era muito alegre, cativo. Acho que a vida é pequena demais para que a gente veja em tudo um problema.

- Tudo é um problema, é aí que está. Você pode entrar para um motoclube, fazer ioga, praticar alpinismo, jogar dominó, qualquer coisa para matar o tempo, mas no fundo todos nós sabemos que a vida é inútil e irrelevante. E quanto ao garoto que morreu. Bom, eu o conhecia. Ele tinha bons pais, uma boa família. Teve o primeiro carro com dezoito anos, um carro antigo restaurado. Namorava uma menina bonita pra caralho. Que razão o camarada tinha para reclamar da vida?

Um andarilho com uma queimadura de segundo grau no rosto, de meses antes, passou pela mesa deles. Sentou nos fundos da lanchonete. Renê deu um gole no café ralo, que era servido em copos plásticos descartáveis, então respondeu:

- Não é disso que eu to falando. É o jeito de encarar as coisas. E isso não é jeito de falar, principalmente se você conhecia o cara.

- Sim, conhecer eu conhecia. Mas um dia ele tinha que morrer. Todo mundo tem. Teria que ser. Poderia ter sido Aids, ou uma machadada no abdômen, ou uma morte heroica, tipo ser atropelado por um ônibus.

Um tumulto interrompeu a conversa. Os rapazes desempregados e anêmicos voltaram suas cabeças e viram o chinês gordo expulsando o mendigo de lá à base de chutes. Conseguiu executar a tarefa com êxito. Quando passou pelos rapazes para voltar para o balcão, olhou para os rapazes ostentando uma expressão hercúlea. Voltou para o balcão e continuou folheando a revista. Renê acabou seu delicioso café.

- Sabe, pra ser sincero, acho até que ele teve sorte- recomeçou Augusto-. Pelo menos ele está longe desse bolo de merda embolorada. Tudo acaba invariavelmente mal. Um dia eles enfiam algodão nos seus ouvidos e narinas, roubam seu relógio de pulso, te banham com um jato gelado de mangueira como se você fosse uma parede. E depois, te jogam numa caixa de madeira. E você ainda corre risco de ser mal falado pelos que continuam vivos.

- É uma visão muito pessimista. E acho que ninguém vai falar tão mal assim de um cara que procurar ser legal, ter uma vida decente.

- Ah, claro, então temos de pagar impostos abusivos, trabalhar duro, apanhar da polícia, comer em espeluncas como essa e ainda por cima andar sorrindo por aí, pra que ninguém fale mal da gente depois de morto? E o pior de tudo, nem somos americanos. Nossos filmes, músicas, livros, tudo isso é merda para a maioria do mundo. Desculpe, se acha que tenho uma visão limitada das coisas. Mas é só o que eu vejo.

- Só não acho produtivo pensar assim. Você é muito pessimista.

Augusto bebeu o último gole do café, que estava quase frio. Os rapazes se levantaram e foram andando. Já haviam pago. O céu estava cinza, havia chovido muito nos últimos cinco dias. A Avenida Treze de Maio curiosamente estava deserta de automóveis, mas os pombos e os usuários de crack estavam circulando por lá, como de costume.

- Eis o centro histórico de Curitiba, senhores turistas- disse Augusto, estendendo as mãos para os prédios velhos pichados.

- Opa!- Gritou Renê, empurrando Augusto para o lado e impedindo Augusto de pisar numa merda humana, fruto dos andarilhos locais.

- Obrigado, cavalheiro, amanhã seremos nós cagando na rua. Vamos cagar no centro histórico de Curitiba! A não ser que a gente comece a trabalhar o quanto antes, o que não será problema. Há excelentes vagas de auxiliar de açougue, faxineiro, vigilante noturno e garçom. Venha para Curitiba, a Europa dentro do Brasil! Tenha a oportunidade de varrer as calçadas de diamante do Batel! -Exclamou Augusto, procurando as chaves para abrir a porta e rindo, amalucado. Haviam chegado no cortiço.

- Você é muito pessimista. Isso vai acabar te matando- disse Renê, que achou a chave antes, abrindo a porta. Também estava rindo.

Os rapazes entraram no exato momento em que a chuva recomeçou. Quando foram para seus quartos, os dois encontraram advertências de despejo debaixo das portas. De repente, nada parecia engraçado. Nada mesmo.

R A Ribeiro
Enviado por R A Ribeiro em 05/11/2013
Reeditado em 27/07/2015
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