Espuma branca
Outra vez os dados rolavam sobre o glauco veludo da mesa de jogos. Outra vez os números não eram favoráveis. Apenas mais uma noite de perdas, regada a rum barato. O ar impregnado com aquela mistura de cigarro com perfume vagabundo só piorava a aparência decadente daquele lugar. Fazer o que? Era o único bingo clandestino que ainda aceitava sua presença, pois de todos os outros já fora expulso. Na maior parte por dar calote, em alguns por se meter em brigas.
Mais uma dose. Outro xis na comanda. O sujeito era insistente. Resolveu tentar uma última fézinha antes de fechar a conta. A saideira. Já tinha perdido mais de 500 reais naquela noite. Mas nessa rodada seria diferente. Seria a rodada derradeira. Definitiva. Iluminada. Pediu à loira escorada no balcão que soprasse os dados. Em sua ébria visão, uma jovem linda dotada de um belo sorriso e um incomparável par de coxas. Geórgia soprou os dados, umedecendo-os com os respingos de baba que transpunham o vão existente no lugar dos seus incisivos superiores, removidos a socos pelo seu companheiro do segundo casamento.
O resultado foi tão positivo quanto o das 23 rodadas anteriores. Sabia que o melhor sempre ficava para o final. Só não sabia de fato, quando o final chegava. O que sabia é que o seu dinheiro acabara. Suas pálpebras pesaram e se fecharam, como janelas de madeira ao vento.
Ao acordar ouviu o silêncio. Apenas o tilintar dos copos sendo recolhidos e levados para a cozinha. Espuma branca varrendo seus pés e a voz da faxineira ao seu lado:
— O bar já fechou moço, cê tem que ir embora.
Pagou a conta no caixa e tão trôpego quanto criança de colo, saiu porta fora. Sob a cabeça, sua vergonha, sobre a cabeça, o amanhecer. Mais uma terça feira vazia. Dali a algumas horas estaria novamente na repartição pública onde trabalhava, soterrado pelos papéis. Sob o teto do Governo. No reduto da justiça. No fórum, onde todas as leis eram postas em prática. Onde sua vida se esvaía em marasmo. Onde seu talento literário não tinha o menor valor. Onde sua única preocupação era digitar corretamente os relatórios e memorandos que lhe eram reportados.
Enfiou a mão no bolso direito e encontrou o Pocket de Bukowski que comprara naquela tarde. Nunca tinha lido Bukowski porque achava vulgar. Mas de que adiantava tanto recato se não passava de um solteiro alcoólatra, viciado em dados. De qualquer forma decidiu que se vivera até então sem ler aquela porra, não seria agora que haveria de mudar. Jogou o exemplar no bueiro. No bolso esquerdo encontrou a chave do velho apartamento alugado na rua nove e algo bem mais interessante. Um canivete suíço. Contemplou o objeto por alguns instantes e tomou sua decisão.
Desferiu o primeiro golpe em seu pescoço com toda a força contida nos seus braços ossudos, mas nenhum corte, nenhum filete de sangue brotou. Tentou novamente, e novamente, e novamente. Era tão perdedor e derrotista que nem se matar conseguia. Por fim, acabou tombando bem no meio da calçada, onde ficou até ouvir ao longe o som de uma sirene e pela fresta de seus olhos semicerrados enxergar a estranha dança do par luzes azul e vermelha se aproximando.