ESTOU AQUI
                                          
Já fiz o mingau. Enquanto esfria, vou aproveitando para reclamar de algumas coisas. Hoje, o vento está tão frio. O outono já começou e com ele veio uma temperatura baixa. Não sei se é este frio inesperado, mas estou muito pensativa. Uma nostalgia toma conta de mim. Estou sozinha. Meus filhos estão envolvidos com os afazeres e já não têm tempo de me visitar. Ficou pior depois que chegaram os netos. Antes, era bonito ver as peripécias que faziam, as “artes” que aprontavam, cada um com sua personalidade marcante.

Parece que ainda escuto as risadas pela casa, quando saíam correndo, um atrás do outro. Às vezes, chego a olhar para o lado, procurando as minhas crianças. Depois, sacudo a cabeça e fico pensando que é uma besteira, que já estou caducando. As minhas crianças hoje são homens de responsabilidade. Por isto não têm tempo para a mãe. Então, vou ficando por aqui, sonhando com as risadas.

Fico me lembrando também dos meus pais e dos meus irmãos. Quantos já se foram. Fico contando os parentes que já perdi. Faltam-me dedos para a contagem. Éramos dezoito irmãos... agora... deixa-me contar... é... somente restaram esses... e já estamos tão velhos... noventa e quatro, noventa e dois anos... é, já estamos bem velhinhos.

Mas a memória do velho é como um filme, basta apertar um botão e começa a ser projetado. Vejo com clareza meu passado. Vejo-me menina. Tinha uma vida difícil, devido à pobreza, mas era feliz. Casei... é mesmo... Tinha esquecido que ainda tinha mais um para contar entre os que já perdi: meu marido.


Pensei que não resistiria, quando partiu. Mas já se passaram dez anos. Esperava que logo viesse me buscar, mas não veio. Então, ainda estou por aqui.
 Ontem, não sei se estava acordada ou sonhando, vi mamãe. Ela só me olhou.

Preciso me agasalhar melhor, o frio parece que entra no meu corpo. Mamãe dizia que o velho fica sem gordura nos rins, por isto sente mais frio. Deve ser isto.

Meus filhos esqueceram-se de mim. Às vezes, fico pensando como reagirão, quando entrarem no apartamento e me encontrarem morta. Talvez nem fiquem chateados... já sou um estorvo para eles.

Aqui, sentada, fico olhando para a rua. Quando chegavam do colégio, cansados, mas sorridentes, levantavam a cabeça e me viam na janela à espera. Já estavam acostumados. Abanavam e vinham ao meu encontro. Entravam, davam-me um beijo e iam logo perguntando: o que temos de bom para comer?

 Depois, já não queriam comer em casa. Preferiam almoçar fora. Diziam que era para não me cansarem. Mas eu sabia que lá fora encontravam comidas mais atrativas.

 Tenho de fechar mais a janela. Este vento...

Quando me sinto muito solitária, falo sozinha. Se alguém me ouvir, não irá estranhar. Velho fala sozinho, não é mesmo?  Quando ocorre de me virem me visitar, não me dão oportunidade de falar. Cada um quer contar a sua novidade para o outro: a política, a queda na bolsa, o trânsito, os assaltos.

Se me retiro da sala, nem sentem a minha falta. Muitas vezes, enquanto conversam, vou para o quarto e pego no sono. Nem vejo saírem.

Quando eram pequenos, queria que crescessem logo. Agora... quero as minhas crianças de volta, enchendo a casa com suas risadas, as brigas, as reclamações e alegrias. Estou tão só. Quem entende esses velhos?

Ah! É mesmo... o meu mingau já esfriou.



 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 03/11/2013
Reeditado em 13/11/2013
Código do texto: T4555198
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.