Horário Nobre

José Meirelles Carvalho- dramaturgo, roteirista, quarenta e seis anos-, abriu a porta do escritório. O Chefe da emissora de TV- obeso, socialite, cinquenta e oito anos-, aguardava-o sentado por trás de uma mesa. Quando abriu a porta o homem estava no telefone. José sentou numa cadeira e esperou. Abriu a pasta, tirou alguns papéis e um livro, deixando-os na mesa. O Chefe desligou o telefone. José não prestou atenção no que falavam. Nunca fazia isso.

- Então, como estamos?

- Acho que bem, senhor, acho que bem.

- Isso é ótimo. É o que meu pai dizia: tudo está bem enquanto é possível fazer o bem.

José riu, apenas para acompanhar o outro, o Chefe. Sabia que o pai do Chefe, falecido fundador da emissora de TV, não passava de um pilantra, mercenário, provocador de alienação em massa. José não queria de maneira alguma voltar a trabalhar na televisão, sobretudo naquela emissora suja, que tinha a maior parte da audiência no Brasil. Mas tinha três filhos e duas ex-mulheres a quem devia pensão e sua nova peça de teatro "O homem nu no contêiner", estava se saindo uma recordista em cadeiras vazias. Além do que queria alugar um apartamento melhor: o novo vizinho bebia muito e sempre ficava agressivo. Precisava de dinheiro.

Um silêncio envolveu o escritório. Os homens ficaram se olhando. O Chefe desfez o sorriso, consultou o relógio no pulso- de ouro maciço- e José, vendo isto, começou:

- Bem... Escrevi uma novela simples. Trouxe o manuscrito completo e uma sinopse, que elaborei para que o senhor tenha uma ideia...- José passou os papéis para o Chefe. Continuou- Tenha a bondade, senhor... Mas essa é só a sinopse, o grosso está nesse livro, diante do senhor.

- Está certo, filho, me dê só um minuto. Oh, mil perdões, esqueci-me de perguntar. Deseja uma água? Alguma coisa para beber?- disse o Chefe, muito gentil, era gentil demais...

- Não, obrigado, estou bem.

José mentiu. Sentia sede. Não via a hora de sair dali, se possível contratado, não era o seu melhor, podia fazer coisas menos artificiais e mais tocantes, mesmo que fosse para uma massa deseducada... Mas tudo bem, que fosse uma novelinha besta, ao menos teria dinheiro, se sentiria feliz, andaria duas quadras a até a praia, tiraria o paletó, os sapatos, as meias, beberia água de coco ou cerveja, ou os dois, planejando uma nova peça que faria, dessa vez com orçamento digno da sua maestria como escritor.

O Chefe seguiu lendo. Lá pela metade da segunda página começou a rosnar, fazendo "Ummmmm, ééé... Ummmm, ai ai... cof, cof". Largou a sinopse e apanhou o grosso livro com o desenvolvimento da novela em cima da mesa. José começou a ficar preocupado. O que haveria de errado? Era uma novela tão boa quanto todas as que tinha escrito anteriormente. Tinha todos os quesitos: um casal com um amor proibido, um vilão, uma penca de personagens que não alteravam em nada o andamento da coisa; a ala dos pobres onde havia o bar onde rolava o pagodinho, uma personagem biscate que poderia lançar tendências de vestuário. Até um fantasma tinha, para deixar o lance mais místico. Seria inovador.

Depois de vinte minutos, o chefe deixou o livro na mesa, ainda aberto, e olhou para José, que tentava dissimular a impaciência e a sede que sentia. Mas o livro estava aberto, talvez fosse um bom sinal, pensou José, se ele tivesse reprovado, teria fechado o livro, por certo, teria.

- Olha filho- começou o Chefe, muito terno-, sua novela tem uma cara bastante brasileira, muitos pobres felizes, exultar a pobreza sempre foi o ingrediente certeiro de audiência na história da teledramaturgia dessa emissora. "Areias do Destino": excelente nome, qualquer analfabeto pode memorizá-lo. Gostei principalmente dessa coisa do casal se conhecer no Oriente e o homem ser um empresário aqui no Rio de Janeiro, e por alguma razão ridícula- confesso, pulei essa parte-, ele vir pra cá e o pai dele ter uma mulher melhor pra ele casar, filha de negociantes e tudo, acho que até não há muito o que se mudar aí. No entanto, você sabe, novela tem que ser assunto, e isso, por si só, não dá assunto. Horário nobre, você é um conhecedor das coisas, não é mesmo, filho?

- Tenho de tudo para acreditar que sim, menos um canal de televisão...

Riram.

- Pois então... O pai desse rapaz, como é mesmo o nome...- o chefe correu os olhos pela folha, acompanhando com o dedo indicador, mas José respondeu antes: "Leon"- Isso... Ele vai ter uma personalidade forte, temperamento forte, vai ser um homem de maus bofes, vingativo, sagaz, que ergueu sua empresa com sacrifício, etc. Tudo bem até aí. Mas por acaso, e veja bem, senhor José Meirelles, hipoteticamente, ele não poderia ser um pedófilo?

- Pedófilo?- José ficou olhando para o Chefe triunfante- Não acha que pode ser...- interrompeu a frase, outra ideia lhe acometeu- nesse caso, quem será a vítima dos abusos?

O Chefe abriu a boca- dentes postiços da melhor qualidade, diria-se marfim-, um sorriso imbecilizante, gargalhando levemente, soprando com força no fim, antes de voltar a falar:

- O Leon vai ser um homem rico, ou melhor, um pedófilo rico, certo? E, portanto, vai ter uma criada, não vai? Essa criada terá uma filha, de onze anos... É, acho que onze é polêmico o suficiente... Bem... Essa menina vai ter as relações com o patrão da mãe, para ser mais claro: ele vai se deitar com a menina. E ela vai gostar, e inclusive, se apaixonar por ele. Isso vai dar assunto. As pessoas vão falar sobre isso. Novela tem que ser assunto.

José não gostou. Tinha família,além do que era uma figura pública. O que pensariam? Lembrou das dívidas e do teatro, sempre vazio, precisava de orçamento para uma peça melhor...

- Está certo, Chefe...

- Isso, filho, gosto disso em você. Sabe ouvir. Estou com um contrato provisório aqui, até que o original fique pronto. Gostaria de enviar sua obra ainda hoje para a central de produções artísticas da TV, quanto antes começarmos a fazer os acertos finais, melhor; temos três semanas pra começar a filmar a sua novela. Mas antes, tem mais uma coisa. Não dá pra colocar um fantasma?

- Tem um fantasma, eu coloquei ele na sinopse que o senhor leu...

- Ah, sim, desculpe, deve ser a vista, tudo certo. E vai haver um espírita? Sabe, quero um cara sensitivo, que fale com esse espírito e ajude a decifrar o que o espírito deseja, e ah, sim,, um bordel cheio de jovens devassas, e quem sabe, colocar alguns monges krishnas... É! Vamos colocar um homem que agride a mulher... Exato! Bate nela com uma raquete de tênis, isso! Ele pode ser o tal braço direito do Leon, pai do rapaz que gosta da moça oriental! O que acha?

- Olha... essas ideias... Nunca fui muito de televisão, mas elas já não foram todas usadas em outras novelas antes?

- José Meirelles, meu querido. Vê-se que tem muito a aprender no meio televisivo. Me diz uma coisa. Se você não é muito de televisão, como sabe que essas coisas aconteceram em novelas anteriores?

- Ouvi comentários.

- Claro, José! Deixa de ser estúpido! Novela tem que ser assunto, não vê, hein?

Ambos riram. Depois disso, José assinou o contrato provisório. Recebeu metade do pagamento em dinheiro, na hora. Além desse pagamento, receberia um salário mensal por direito pela execução do texto até o fim da novela, que quando chegasse, receberia a segunda parte do pagamento.

Quando deixou o edifício, José foi para a praia, coçar o saco olhando o pôr do sol, descalço. Bebeu cerveja e água de coco. O Rio de Janeiro continuava lindo.

R A Ribeiro
Enviado por R A Ribeiro em 31/10/2013
Reeditado em 27/07/2015
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