"ALGUÉM"
Agesilau, tão logo botou a cara para fora da barriga da mãe, o pai, com cara de panaca, foi logo apelidando aquela coisa toda suja e enrrugada, de “Lauzinho”. Em seguida, olhando para a cara dos médicos, enfermeiras e os parentes que se encontravam atrás da janela de vidro, no corredor, cheio de gestos berrou em alto e bom som: “Este vai ser alguém na vida! Vocês vão ver! Vai ser a honra da família! Podem tomar nota!
Na pia batismal, sete dias mais tarde, o rebento recebeu o nome escolhido. Já limpinho, com as bochechas rosadas e com a boca aberta naquele berreiro federal. O padre, impaciente, tascou uma dose dupla de sal na língua do novo cristão e sapecou-lhe água benta bem no meio das ventas, com a oculta intenção de abafar aquele choro insano em acidental afogamento. Dali, o dito cujo iria diretinho para o céu, acompanhado de um cortejo de anjinhos com harpas, liras e os cambaus.
À medida que o tempo corria, o menino crescia e o apelido ia diminuindo de tamanho. De Lauzinho passou a ser chamado e conhecido por “Lalau”. Os pais achavam mais bonitinho e fácil de pronunciar. Como todo menino daquela idade, tudo o que fazia era entendido como “gracinha” e acabou se transformando no alvo das atenções familiares com dezenas de projeções para o futuro. Afinal, a família em coro repetia o vaticínio paterno “Esse vai ser alguém na vida”!
O mundo ia dando suas voltas e Lalau, no meio, crescia fazendo quase tudo o que as crianças costumam fazer; jogava bola, empinava pipas, brincava de pique, andava de bicicleta, trepava em árvores, etc...
Um belo dia, essa brincadeira de trepar em árvores assinalou um caminho um tanto diverso da preconização familiar. Numa sexta-feira enfarruscada, o cachorro do vizinho, o Seu Tota, latia e rosnava sem parar, lá no fundão do quintal. Seu Tota não pestanejou. Passou a mão na espingarda de chumbinho e sentou fogo em uma sombra que se empoleirava entre os galhos da sua jabuticabeira.
Acontece que essa jabuticabeira fora plantada pela finada mulher e Tota jurava de pés juntos que a alma dela havia se incorporado naquela planta. Daí, o ciúme implacável e a absoluta negativa a qualquer um que se aproximasse para provar daqueles frutos redondinhos, negros, brilhantes e deliciosos de tanta doçura. O cachorro tinha sido colocado no quintal, para cuidar de espantar os possíveis aventureiros.
Lalau sabia disso, mas havia jurado para si mesmo que, um dia, ainda provaria daquelas jabuticabas e o velho pão-duro da casa vizinha não iria nem desconfiar. Assim, passou a cuidar de se aproximar do cachorro, conquistando-lhe a simpatia.
Com um pedaço de vergalhão abriu um buraco no muro através do qual poderia ver o que se passava do outro lado e avaliar as possibilidades. Andava inquieto e achava que o tempo estava rolando e as jabuticabas iriam acabar ficando azedas e murchas.
Não deu outra, com uma vara atravessava para o outro lado, ora salsichas, ora linguiças, pedaços de carne e, com o tempo, até mesmo umas costeletas de porco que achava na geladeira da sua casa.
A mãe percebia o desfalque, mas não atinava com o responsável. Achava que podia ser coisa da Custódia, a mulher que vinha duas vezes por semana para passar a roupa da família. Como era pobre e cheia de filhos, certamente estava se aproveitando da fartura para poder reforçar a alimentação familiar.
A mãe de Lalau, mulher cristã devotada, acabou por fazer vistas grossas e dar o dito pelo não dito. Afinal, aquilo era só um furtozinho de nada e nem levou o assunto ao conhecimento do marido.
As coisas caminhavam nesse pé e o menino já havia estabelecido uma relação afável com o cachorro do vizinho, chegando mesmo a receber algumas lambidas na mão das salsichas e aceitar umas cosquinhas na barriga e no dorso. Lalau achou que estava na hora de dar o golpe final. Olhou para um lado, olhou para o outro e, bumba, pulou o muro alcançando a jabuticabeira do velho Tota. O cão não gostou nada da incursão e tratou de latir enraivecido, chamando atenção do dono da casa.
O chumbinho da espingarda atingiu bem na bunda do garoto que acabou despencando de onde estava e disparou em direção ao muro, de volta para casa. Antes mesmo que os pais atinassem com o ocorrido, o velho Tota berrava lá do fundo do seu quintal: Essa bosta desse Lalau já nasceu pra ser ladrão! Veja se isso é nome que se ponha em alguém!
Lalau é Lalau, né? Se pintar aqui, de novo, vai levar chumbo! É isso que ladrão merece!
O pai, Deusdedith, não atinava com o que estava acontecendo com seu filho e sentia-se profundamente injuriado pelo menino estar sendo chamado de ladrão a plenos pulmões, com a vizinhança ouvindo e fazendo comentários dos mais ácidos possíveis.
Mafalda, a mãe, revolvendo os pensamentos, imaginou que poderia estar enganada em culpabilizar a passadeira pelo sumiço das salsichas e lingüiças do refrigerador. Juntando uma coisa com a outra, aquilo começava a fazer sentido. Será que Lalau estava adquirido o mau hábito de apoderar-se de coisas alheias sem pedir? Será? Enfim, predominou o sentimento materno e o caso terminou diluído pelo bendito e santo amor maternal. Como resultado, o perdão...
Já taludinho, Lalau. Como todas as crianças da sua idade estava frequentando a escola. A essa altura dos acontecimentos, fazia parte de uma turma do Terceiro ano Fundamental.
A professora, já fazia algum tempo, andava desconfiada de que Lalau estava aprontando; não faltava uma reclamação por semana, de algum aluno com queixa de desaparecimento de alguma coisa da sua mochila ou de cima da carteira.
Sempre desapareciam canetas, borrachas, merendas e até alguns utensílios como apontador, régua, etc... Assim, resolveu ficar à espreita para ver se pegava o aprendiz de gatuno que aliviava os pertences dos seus alunos.
Não deu outra, numa terça-feira, logo após o primeiro intervalo, enquanto a meninada corria pelo pátio ou fazia algazarra na cantina, D.Gertrudes ficava espreitando quem entrava na sala. Foi assim que viu Lalau rodeando a porta, olhando para um lado e para o outro e, finalmente, entrando.
Foi bem fácil comprovar. D.Gertrudes pegou Lalau, no ato, com a mão enfiada na mochila da Juju, uma loirinha vesga, de nariz sardento e tranças ensebadas.
A mulher fez um escândalo nacional e todo mundo correu para a porta da sua sala para ver o que estava acontecendo. Ainda deu tempo de ver um celular cor-de-rosa com estrelinhas douradas, metade dentro e metade fora da mochila da menina.
A diretora, esbravejando mandou chamar o inspetor, a orientadora educacional e duas serventes para servirem de testemunha. Foi para a sala da diretoria, ligou para a casa de Lalau e descascou a batata, contando os malfeitos do menino e as desconfianças que culminaram com o flagrante delito.
Lalau teve direito à documentação escolar a fim de que seus pais cuidassem da transferência para outra escola. Ali não era lugar para meninos com esse tipo de comportamento. A escola tinha um nome a zelar e os pais faziam gosto de terem seus filhos matriculados na Escola de Primeiro e Segundo Graus Desembargador “Hermenegildo Panteídes da Nóbrega”, que fora o primeiro juiz da Comarca.
Na escola para onde conseguiu transferência, após algum tempo, surgiram novos problemas. O menino não era nada amigável com os livros, matava aulas e zoava o tempo todo em que a classe estava em aulas. Esperto, conseguia passar de ano, com nota mínima, mesmo assim, na base da “cola”. Tinha várias manhas para copiar do colegas e trocar bilhetinhos com o resultado das questões de prova.
Aos dezessete anos decidiu que não iria mais estudar nada. Iria cuidar da vida. A mãe, já viúva, perdera a autoridade sobre o filho e nem se importava mais com a vida de sobressaltos que estava levando, desde a morte do marido, num assalto a poucos metros da rua em que moravam.
O fato é que Lalau passou a andar com más companhias e depois de haver experimentado alguns tipos de droga tinha uma queda pela nóia da maconha. Passava metade do dia chapado e a outra metade, arquitetando um jeito de “aliviar” alguma coisa para trocar pela droga, num traficante conhecido, ali mesmo, das vizinhanças.
Como não trabalhava, aperfeiçoou-se em pequenos furtos e operando em lojas, ou em qualquer lugar em que houvesse ajuntamento de vendedores, camelôs, etc... Sempre conseguia alguma coisa para trocar pela droga.
Um dia, conheceu um estudante de economia que parecia ter certa liderança sobre os garotos do lugar. Desse modo, acabou ficando interessado nos assuntos da política e, principalmente, dos descaminhos dessa sociedade de consumo, reacionária e mesquinha, comandada por banqueiros, exploradores e políticos ladrões mafiosos.
Aos poucos, contaminado pelo universitário, falava em Marx, Engels, Gramsci e outros, como se fosse doutor em assuntos sociológicos ou políticos. Passou a nutrir um ódio mortal desse pessoal da direita reacionária e jurava que iria apoiar os movimentos que buscavam uma revirada em direção de um país mais justo, onde todos pudessem usufruir das benesses que só os ricos desfrutam.
Um dia, seu ídolo, o universitário das Ciências Econômicas iria participar de um movimento em que estudantes protestariam contra as medidas do Reitor que pioraram a comida servida no refeitório, fazendo daquilo pior que lavagem de porco. Iriam aproveitar uma passeata de professores descontentes com o governo e cuidar dos seus interesses.
Para não ficarem a descoberto, os manifestantes deveriam cobrir a cabeça com um pano ou capuz preto, deixando só os olhos de fora, para poderem ver o campo de ação e tomar as medidas adequadas.
Não deu outra. Com o esquema armado, na fervura das emoções, apareceu um grupo de “black-blocs”, todos com pedaços de pau e garrafas com coquetéis molotov. Lalau, pensando que se tratava de gente ligada ao seu amigo universitário, assumiu o comando da turba e deu voz de avançar.
Foi então que começou uma quebradeira dos infernos. Vitrines, lojas, orelhões, foram quebrados a golpe de barras de ferro. Ônibus foram queimados e ainda desceram a porrada em uns soldados de uma guarnição da PM que deram bobeira na área.
Enquanto o pau comia de um lado e do outro, surgiu uma tropa de choque descendo o cacete em todo mundo que via pela frente... No meio da refrega, uma barra de ferro arrebenta a cabeça de Lalau. Ninguém soube quem foi o artista desse drama. Só se sabe que um montão de gente foi parar na delegacia.
Durante as investigações, perguntados sobre quem teria iniciado o conflito, todos os interrogados alegaram ter sido “alguém” que estava de preto, com jeito de “black-bloc”. Parecia ser um dos chefes deles...
Nenhum dos depoentes conhecia o responsável. O cara não era professor e nem aluno universitário. Ninguém sabia o seu nome...
Na conclusão do inquérito, como não apareceram nomes a quem responsabilizar, laconicamente, a culpa caiu sobre um certo “alguém” que, infiltrado na multidão deu partida ao entrevero que culminou com a sua própria morte.
Ninguém ficou sabendo. Só nós. O “alguém” era o Lalau... Seu pai tinha razão ao declarar, no batismo: “Este vai ser alguém na vida”! E foi mesmo... Tanto alguém quanto lalau!
Anunnak – 30/10/2013 – 19:57hs