CEM DIAS SEM LAÇOS - Cap. XIX - Um raro prazer

Às seis horas o sino eletrônico da matriz repicou. Miguel fechou o livro. Fez uma oração silenciosa. Era a hora do Ângelus. Ia erguer-se da cadeira para cumprir uma pequena e prazerosa tarefa quando Altiva aproximou-se com uma xícara de café fumegante. Um agrado ao marido. Envolvendo-lhe o pescoço com os braços macios e cheirosos, deu-lhe um beijo carinhoso no alto da cabeça, nos cabelos grisalhos, um gesto bem próprio seu. Estava bem produzida como quem tivesse se arrumado para sair. Beirando os cinqüenta anos era ainda uma mulher bonita, de porte elegante e excelente gosto para vestir-se, os cabelos à altura dos ombros, muito negros e brilhantes, realçavam-lhe a beleza do rosto, combinando divinamente com os olhos pretos. Miguel sorriu deliciado, uma onda de orgulho e bem estar invadiu-lhe alma. Sentiu-se um homem abençoado por Deus.

`_ Você está ainda mais linda do que quando a conheci. Disse depositando o pires com a xícara sobre o braço da cadeira.

_ Hum! Seu bobão.

Mas sorriu lisonjeada.

_ Está pensando em sair?

_ Por que pergunta?

_ Ora! Por que se arrumou assim tão bonita?

Esqueceu-se de que temos convidados?

_ Ah! O Benito e a Ester? São quase da família.

_ Você sabe que não serão só eles. Padre Clemente e o Professor Rogério sempre aparecem por aqui aos sábados depois da missa e... Adivinha? Ângela também tem um convidado hoje. Vai nos apresentar aí um moço que conheceu.

_ Ah, é!?

Miguel sorveu com prazer o delicioso café. Pensando na sorte de ter uma filha centrada e carinhosa como Ângela e no quanto queria a felicidade dela. Que Deus lhe pusesse no caminho uma santa pessoa.

_ Bem. Disse por fim. Conheçamos o tal rapaz.

Ergueu-se, guardou o livro no compartimento da cadeira. Beijou levemente a mulher.

_ Eu estava indo lá no terraço ver como vão os canários. Hoje completa treze dias que a fêmea branca está chocando. Os filhotes já devem estar bicando a casca. Não quer ver?

Ela bateu palmas dando um saltinho gracioso e espontâneo.

_ Mas é claro que eu quero ver. Vamos logo.

Saiu puxando o marido pela mão rumo à escada que levava ao terraço onde haviam construído uma pequena cobertura para a criação de canários de Miguel e uma estufa para as orquídeas de Altiva. Dengo os seguiu em silêncio, espichando ainda mais o corpinho roliço e comprido a cada degrau.

O vão entre o parapeito do terraço e a cobertura do criadouro descortinava um céu violeta com rajas vermelhas no poente, onde o sol acabara de se esconder. Os canários ainda não haviam se recolhido e cantavam indiferentes à presença humana. Miguel acendeu a luz para examinar melhor o ninho. Lá estavam três filhotes implumes abrindo os biquinhos ávidos e chiando incessantemente, colocando os pais numa agitação nervosa, ansiosos por atendê-los. Restava o ovo, o primeiro, não tinha sido galado, não iria eclodir. Agora já podia limpar o ninho e retirá-lo juntamente com as cascas.

_Ah, meu Deus! Que coisinhas mais fofas!

Com o braço direito no ombro do marido, inclinada sobre a gaiola, Altiva contemplava enternecida aquelas vidinhas. O casal agora acompanharia com um prazer cotidiano cheio de pequenas surpresas, o desenvolvimento daquela linda família. Os novos membros iam dia a dia desenvolvendo uma fina penugem até que apontariam as primeiras penas, muito delicadas. E um dia deixariam o ninho.

Miguel começou a tomar algumas providências que eram urgentes como servir o alimento apropriado para os novos membros. Altiva quis auxiliar:

_ O que posso fazer?

_ Bom! Tenho que peneirar um pouco de farinhada umedecida e cozinhar um ovo de galinha, precisamos abastecer a despensa deste casal para que alimente a galerinha esfomeada. Também tenho que fazer os acentos no livro de registros...

_ Então eu preparo a comida deles e você fica com a parte burocrática.

_ Combinado!

Foi quando ouviram os passos estouvados de Andrei subindo de três em três os degraus da escada. Deu um beijo suado na mãe que empurrou-o delicadamente pelo peito com as mãos espalmadas simulando nojo:

_ Credo! Você está fedendo.

Beijou também o pai, como nunca deixou de fazer desde criança:

_ Como vão o senhor e senhora Stoppa? _ E sem esperar resposta _ Ué! Já nasceram?

Inclinou-se para observar de perto os filhotes, apoiando as mãos nos joelhos:

_ Não seriam quatro filhotes, pai?

_ Aquele primeiro ovo não foi galado.

_ Viu? O senhor demorou a arranjar um namorado pra ela. Da próxima vez fica mais esperto, véi. Já sabe, né? Tem que conferir as cloacas das fêmeas. Dilatou, lá vem ovo.

_ É verdade! Tenho dezoito canárias adultas. Vou te dar a tarefa se assoprar o rabo de cada uma delas todos os dias.

_ Vô tomá meu banho. Tchau!

Fez um afago violento na cabeça de Dengo, que rosnou com falsa zanga. Desceu a escada em três passos largos. A mãe o seguiu bem mais devagar e rindo copiosamente. Foi para a cozinha cozinhar um ovo.

Miguel também sorriu feliz e agradecido a Deus, dirigiu ainda um olhar para o poente. Escurecia. Num vão livre de parede caiada do criadouro, num pequeno quadro de vidro com moldura de madeira, a imagem de um velhinho de expressão bondosa e semblante alegre o seguia com os olhos.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 23/10/2013
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