CEM DIAS SEM LAÇOS - Cap - XVIII - O jovem Andrei

Andrei deixou a quadra sob verdadeira ovação. Dos colegas e das meninas que acompanhavam da arquibancada de concreto armado. Meninas brasileiras para todos os gostos, como dizia o Sgt Rômulo. Magrinhas, gordinhas, loirinhas, moreninhas, ruivinhas, negrinhas, inteligentes, burrinhas, calminhas, bravinhas.

Altieres deu-lhe uma chibatada com a camisa nas costas suadas.

_ Véi, cê no meio dessas mina aí parece uma lombriga numa macarronada. Faz a festa.

Andrei cuspiu de lado tentando secar o suor do rosto com a camisa encharcada.

_Cê é porco, véi. Que merda!

Caminhavam os dois pela rua movimentada de bairro. Sábado à tardinha. Barzinhos lotados. Galera na rua, véipraquivéiprali. Colegas desde tempos imemoráveis agora cursavam juntos o último ano do ensino médio. Sabiam por instinto que era um fim de temporada. Transição entre a vida gostosa de meninos de bairro e trampo de brasileiro adulto lascado.

_ Cinco gols, véi! Cê hoje tava impossível. Vai sair à noite?

_ Vou, véi. Marquei com o Diego e o Pimba. Vamos ensaiar um pouco.

_ Na casa do Pimba?

_ Não. Do Diego. O pai dele vai fazer um churrasco. O coroa é entusiasmado, véi. Tá dando a maior força pra banda. Tá disposto até a investir uma grana em equipamentos.

_ Já arranjaram um nome?

_ Ainda não, véi. Tem tempo.

_ Então não vai sair com a Vitória hoje?

_ Vô nada. Andei pensando naquela conversa do Sgt Rômulo. Acho que ele está certo. Essa coisa de compromisso na nossa idade atrapalha as coisas.

_ Ah! Véi. Cê vai abrir mão de uma gatinha daquela por causa da conversa do Meganha?

_ Sei lá véi. Eu acho que o professor tem razão.

_ Bem! Tua alma, tua palma. Como diz minha vó. Falô, véi!

_ Falô! Se der aparece lá na casa do Diego.

_ Acho que eu vou lá sim.

O amigo virou a esquina e Andrei seguiu rumo à sua casa. Estava muito excitado. A adrenalina do jogo bem disputado demorando pra se acalmar. A imagem do rosto bonito e irreverente de Vitória veio à sua mente. A pele morena, os olhos espertos, o narizinho perfeito, o sorriso mais lindo que já vira. Os dentinhos pequenos e regulares lembravam o rosário de marfim de Vovó Cida. Era mesmo um encanto. Mas... Ô, diacho! Por que é que não havia no meio daquelas inúmeras disciplinas idiotas do colégio, alguma que ensinasse a lidar com essas coisas do coração? Por sorte tinha o Srg Rômulo de quem se tornara muito amigo ultimamente. Ele era bravo e exigente. A maioria dos alunos o achava mesmo um “pé no saco”. Mas gostara muito dele. Depois do pai, o cara que ele mais admirava no mundo, vinha o Meganha, só depois é que vinha o padrinho Márcio e Padre Clemente.

Seguia pela rua movimentada, de calção e tênis, a camisa jogada no ombro, o torço nu rebrilhando de suor. As primeiras luzes artificiais começavam a fazer sua pobre concorrência com a luz fantástica do céu alaranjado de fim de tarde. Estava contente. Sábado era um dia feliz em casa. Invariavelmente apareciam os amigos do pai para um serão alegre com muita música. Bebericavam uma caninha e ficavam alegres. A mãe preparava seus melhores pratos e ficava muito sorridente diante de tantos elogios. Padre Clemente e Professor Rogério dificilmente faltavam. Verdadeiros glutões, eram os que mais levantavam a bola de D. Altiva. Depois do jantar apareciam as amigas de Ângela, juntas elas davam um último retoque na aparência, não raro trocavam de roupas ou acessórios umas com as outras, numa alegre algazarra juvenil. Quando saíam pra balada o vozerio diminuía sensivelmente e por alguns minutos uma mistura de perfumes ainda pairava no ar se misturando aos cheiros agradáveis da cozinha. Andrei também gostava de aproveitar a companhia dos coroas para o jantar, mas sempre marcava algum programa com os amigos para depois. Os coroas tocavam e cantavam divinamente, mas tinham um repertório muito antiquado. Gostava das suas discussões sobre estilos musicais e figuras jurássicas da música popular brasileira, os fatos e eventos do mundo artístico, alguns com grandes nomes e que o pai fora testemunha ocular, mas o saudosismo dos velhos o incomodava. Achava que eles perdiam muito com aquele preconceito pelo moderno. Ele, por exemplo, tinha gosto exigente pra música, mas sabia garimpar no meio da enxurrada de músicas comerciais, muita coisa de valor. Um dia fizera um comentário neste sentido com o pai. O velho ficou um tempo digerindo a opinião do filho pra comentar com sapiência.

_ Você tem razão! Se estudar com carinho o repertório das bandas, cujos componentes estão hoje com a minha idade, vai perceber que eles não tinham preconceito para com as músicas do passado e garimparam muita coisa antiga que transformaram em sucesso muito maior que o alcançado pelas gravações originais.

Era um delicado tapa de luva bem ao estilo do velho Miguel. Andrei tinha muito orgulho do pai. Um santo do século XXI, como costumava tratá-lo o Padre Clemente. A verdade é que a vida do velho foi marcada por muitas renúncias e o reverendo via na capacidade para a renúncia uma das maiores virtudes. Também ele fizera uma infinidade delas. Miguel guardava uma volumosa pasta a quem pouquíssimas pessoas tinham acesso. Era só para seu deleite pessoal. O arquivo de uma época muito promissora de sua vida, na qual ele fora imensamente feliz e à qual renunciara sem o mínimo de arrependimento. Continha um monte de recortes de jornais e revistas da década de oitenta. Nas fotografias um jovem alto magro e cabeludo, nas legendas o pseudônimo Guel Stoppa. Soube dessas coisas pela mãe, numa tarde em que ficou chateado com o velho porque ele recusara comprar-lhe um joguinho eletrônico. D Altiva chamou o adolescente de quinze anos para uma conversa que durou horas e rendeu muitas lágrimas. Ele que já achava o pai uma figura excepcional, passou a ver nele um Ser Humano inigualável.

Naquela bonita tarde de sábado, dois anos depois daquela conversa com a mãe e um ano depois de ter tido a coragem de chamá-lo pela primeira vez de Seu Stoppa. Ria sozinho dessas coisas, enquanto se dirigia para casa.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 22/10/2013
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