Um dia de sementeira 2ª parte

Na torre da igreja, soaram as doze badaladas do meio-dia. O senhor Aníbal deitou os olhos ao caminho, preocupado com a demora do Carlitos.

- Não te preocupes homem. - Diz a tia Ermelinda. – Então não conheces o filho que tens? Entreve-se p’ra aí a correr atrás de algum gafanhoto!.. Olha! Olha, falai no diabo.

Empurrando o seu carrito de madeira feito pelo mestre carpinteiro, com o garrafão de vinho e um cântaro de água, o Carlitos com o rosto afogueado pelo esforço, chegou ao pé do pai.

- Estava a ver que nunca mais cá chegavas!.. Se calhar fizeste alguma das tuas maroteiras pelo caminho?

- Não paizinho, eu não fiz nada, fiquei foi a ver passar o rebanho do senhor Costa. Tantas ovelhas paizinho! E os cães, é cada um! Quase podiam comigo em cima. - Exclamou o Carlitos.

- Está bem, está bem… Vai dar de beber ao pessoal. – Ordenou o Sr. Aníbal.

Carlitos com o garrafão deu de beber aos adultos e depois distribuiu água pelos mais novos.

Com grandes goles, Tonito bebia pelo copo de alumínio, enquanto o Carlitos provocador, assobiava, como se estivesse a dessedentar os bois.

- Nunca a água me amargou, enquanto o diabo me assobiou. – Respondeu o Tonito, em resposta à provocação.

A rir o Carlitos, continuou com a sua missão de aguadeiro.

- Ó senhor Aníbal!.. Está a terra pronta para se lançar a semente, mas se calhar é melhor ficar para depois do jantar! – Opinou o Sr. António.

-Tem razão, até porque já são horas e a minha Gracinda, deve estar por aí a romper. Aproveite e vá tratar dos animais, enquanto eu tiro um balde de água do poço p’ra lhes dar.

- Está um calor que não é normal para esta época. – Comenta a dona Gracinda enquanto dispunha os apetrechos para o jantar, sobre uma grande toalha, aos quadrados vermelhos e brancos.

- É verdade! Até parece verão, benzo ó Deus, mas ainda bem, porque o Sol é a capa dos pobres. – Remata a tia Ermelinda.

Depois de uma lauta refeição, de arroz com feijão, acompanhado de costeletas fritas e morcelas feitas pela mulher do açougueiro, sopa e um lindo pão-de-ló para terminar. Era hora para descansar. Cada qual procurava a melhor posição, para aproveitar bem aquela hora da sesta. Os miúdos depois da barriga aconchegada, brincavam por ali perto, com a recomendação de não fazerem barulho, pois os mais velhos poderiam querer dormir.

- Dona Ermelinda tem tido notícias do seu homem? – Pergunta o António.

- Qual quê filho! Vai já para quase três meses, que não recebo carta.

- Ainda me lembro quando ele foi para o Brasil, andava eu na 4ª classe. - Observou o António

- Pois é, quase vinte anos passaram e para quê? Para eu sofrer com a ausência do meu querido homem e os meus dois filhos serem criados sem os mimos do pai. Então tu, não te governaste até agora António? Sem teres de ir para esse fim do mundo, com a mira na árvore das patacas? Só Deus é que sabe o que tenho sofrido, sem saber se ele está bem ou mal e se algum dia volta.

- Ó senhora Ermelinda, isso nem parece seu, então não há-de voltar!.. Qualquer dia, aparece p´ra aí rico e com muitos anos ainda para estarem juntos.

- Será. Mas o dinheiro não é tudo. Venha pobre ou rico, mas que venha. - Aquiesceu a tia Ermelinda.

Cada qual para seu lado, dormiam a Celeste, a dona Gracinda e o Sr. Aníbal com o braço dobrado debaixo da cabeça, chapéu a tapar a cara, dava também sinais de se encontrar nos braços de Morfeu, porém às turras, a avaliar pelos estremeções e o ressonar que deveriam ser as pragas.

António depois da conversa com a tia Ermelinda ficou a matutar na vida. Pensou que seria da sua Rosita, se quando o Alfredo Brasileiro regressou à terra, a esbanjar contos de reis e o incitou a ir trabalhar numa das suas padarias, de que dizia ser proprietário. Ainda bem que a sua mulher o desviou de tal proposta. Tinha casado para quê? Para envelhecer num outro país longe dos seus? Isso era lá vida! Por muito dinheiro que ganhasse, nunca pagaria o prazer de ver os seus ricos filhos crescer e à noite sentir o calor, da sua doce companheira. Não, decididamente não, nunca mais pensaria em emigrar, pois como dizia seu pai: Vale mais um caldo em nossa casa, do que torresmos na casa dos outros.

Empoleirados em cima da oliveira, estavam os garotos muito divertidos, com a baraça do Raul, arrastando-a levemente na cara dos dorminhocos. A custo abafavam o riso sempre que os viam a sacudir aquelas moscas malditas, sem no entanto acordarem.

O Carlitos que apesar de ser o mais novo, era porém o mais judeu, conseguiu chegar à ponta da pernada e devagarinho fazia cócegas nos lábios da sua mãe que de boca aberta, soprava na intenção de afastar o maldito insecto. Sem poder conter o riso, o Carlitos descuidou-se e deixou entrar um bocado da baraça dentro da boca da mãe.

Estremunhada, a dona Gracinda levanta-se em grande aflição, a cuspir e arrastando a saliva do fundo da garganta, tentando com isso expulsar o que lhe parecia ser um bicho.

Em cima da árvore, ouviu-se uma grande chinfrineira da canalha a rir, perante o ar aflito da senhora Gracinda. Logo os adultos se levantaram e ao aperceberem-se que o bicho e as moscas, não passavam de uma baraça esticada, rodearam a oliveira, com intenção de castigar aqueles pardais desasados.

Com uma vergasta na mão, a senhora Gracinda desafiava os pequenos a descerem. Mas à vista da vergasta, é o desces. Valeu a tia Ermelinda que intercedeu a favor dos pequenos dizendo:

- Parece que vocês nunca foram crianças? Vamos mas é lá ao trabalho.

De cesto de vime no braço, leira acima leira abaixo semeava o António milho com algum feijão á mistura, enquanto o Raul comandava as operações de retirar a grade do carro e arrumava a charrua. Apesar dos seus dez anos, Raul, com a ajuda das mulheres equipou os bois para a última tarefa da sementeira que era gradar o terreno.

Depois da merenda, com a sementeira pronta, foi só carregar o carro com os apetrechos da lavoura, fazer contas com o Sr. Aníbal e ida para casa.

«O dia correu bem graças a Deus. Hoje estaria despachado antes das trindades e o Raul ainda poderia brincar, com a irmã antes da ceia», pensava o António.

A comer o caldo verde, o António olhava para a sua linda mulher e sem querer veio-lhe à ideia novamente a tia Ermelinda, que tão nova, se viu sem a companhia do marido. Brasil! Brasil uma gaita. Não era o filho do seu pai, que abdicaria daquela felicidade, por dinheiro nenhum deste mundo.

- Bom! Meninos tudo p’rá deita, que hoje foi um dia duro. – Diz o António.

Era quase meia-noite, quando a Rosa de candeeiro a petróleo na mão, se foi deitar junto do seu homem. Tal como o António nunca se deitava sem antes, aconchegar a roupa aos filhos. A casa ficou às escuras, porém quem escutasse com atenção, ouviria ainda, duas respirações ofegantes. E depois o silêncio, mais nada que o silêncio, na casa do lavrador pobre, mas feliz.

Lorde
Enviado por Lorde em 22/10/2013
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