Um dia de sementeira

-Vai!...Vai amarelo, chega-te ao rego! Então mourisco anda… Aí bois lindos… Raul, atenção aos gaipos!... Pica, pica raios, que temos que lavrar esta leira antes do jantar. É pessoal piquem bem essa leiva, c’os diabos. Comandava o António, dono da junta de bois, de camisa desabotoada, chapéu enterrado na nuca e com grandes gotas de suor, amortecidas por um lenço vermelho com riscas brancas, atado ao pescoço. Enquanto manejava a charrua, com a mestria de quem lhe tinha nascido os dentes a lidar com a terra.

António filho de lavradores, desde de criança habituado a lidar com bois e na lide do campo. Com dinheiro emprestado, comprara a sua primeira junta. Assim que a conseguiu pagar, pensou no casamento com a Rosita das Eiras, sua namorada desde o tempo de escola. Com dois filhos, a Anita de sete e o Raul com dez anos, sabia já colocar a soga e à frente dos bois com o seu eiche, eiche, ajudava o pai no lavrar dos campos.

Atrás do lavrador, seguiam o dono da terra, duas mulheres e quatro crianças de enxada e sachola em punho, picavam e reviravam os torrões que a aiveca não voltou. Carlitos a mais nova das crianças, filho do senhor Amílcar, com o seu sachito era o último da fila, parando aqui e acolá, sempre que via um grilo ou ralo. O pai já deixara de se ocupar dele, pois no meio dos outros só empatava e por mais de que uma vez o senhor Aníbal o ameaçou na brincadeira, com o rabo da enxada.

Eram dez horas da manhã, o sol já queimava os braços desnudados. Desde o arrebol que a charrua sulcava aquela terra negra, revirando-a debaixo para cima, escondendo no seu interior restolho e erva juntamente com o estrume, que iriam servir de nutrimento à nova sementeira.

De canastra à cabeça, chega a senhora Gracinda com o almoço.

- Senhor António é hora do almoço! – Diz a patroa, que à sombra de uma oliveira, dispusera já sobre uma alva toalha de linho, estendida sobre a erva fresca os pratos com fundo de cavalinho pintado próprios para as grandes ocasiões, duas grandes broas cosidas de véspera, uma malga de azeitonas, um queijo de ovelha, copos, um garrafão do melhor vinho e um grande tacho de loiça preta, ainda a fumegar de arroz de coelho.

-É p’ra já!.. É só dar a palha aos bois. – Responde o António, praticando os preceitos do seu pai: antes de se sentar, tratar primeiro dos animais. Jamais o António se deitou sem antes dar água e comida aos animais. Graças a esse esmero, os bois do António eram a invejados por muitos lavradores.

De cabeça descoberta, todos se sentam em volta da toalha, enchendo de vinho os copos, enquanto esperam que a dona Gracinda os sirva, vão-se provendo de azeitonas e fatias de broa.

- Dê-me cá o seu prato senhor António! – Diz a patroa que, de colher em punho se preparava para servir o dono dos bois, como era norma, em primeiro lugar.

- Ó dona Gracinda deite só arroz, aqui para o meu Tonito. - Pede a Celeste, uma das mulheres.

- Desculpe-me, mas este meu filho é um lambisqueiro, não gosta de coelho, só quer queijo; queijo e pão.

- Não te apoquentes mulher que eu tenho aqui queijo. - Diz a dona Gracinda, enquanto corta um bocado e dá ao Tonito.

Todos almoçaram em silêncio, com o trabalho que tinham pela frente não era hora para grandes conversas, logo sim, à hora da sesta haveria mais tempo.

Todos se preparavam para recomeçar, quando se ouve um grito da tia Ermelinda, que com ambas as mãos no peito, o sacudia em grande aflição.

- Ai meu Deus! Acudam! Acudam… Eu tenho qualquer coisa a mexer aqui no peito.

Logo as mulheres a rodearam, para a proteger dos olhares dos homens, enquanto a dona Gracinda enfiando a mão dentro do corpete grita.

- Esteja quieta, que já a apanhei…Olhe! É uma sardanisca.

- Credo!.. Que susto apanhei, até pensei que era uma cobra! – Diz a pobre, abotoando a blusa.

Mais à frente, junto aos bois, ouvia-se o Carlitos a rir às bandeiras despregadas.

- Ah malandro, foste tu? Espera aí, que eu já te dou a brincadeira! - Exclamou o pai do Carlitos, entre o sério e vontade de rir, perante a traquinice do seu rebento. Agarrou-o pela orelha e obrigou-o a pedir desculpa à tia Ermelinda.

Passado o susto, a tia Ermelinda, lembrou-se também das suas brincadeiras de rapariga e sorria ao lembrar-se duma ocasião em que depois de aliviar a tripa, pegou no seu chapéu de palha e colocou-o em cima. Chamou pelo Zé, um rapaz que juntamente com outros guardava o gado pelos pinhais.

- Zé anda cá depressa. Apanhei um perdigoto, está aqui dentro do chapéu, eu levanto-o devagarinho e tu agarra-lo.

O Zé era o mais rápido e o mais ladino dos rapazes e isto de apanhar um perdigoto à unha era convite que o enchia de prazer. De cócoras, com os músculos contraídos, todo ele era uma mola pronto a saltar sobre a presa. À vista do chapéu passou ele a comandar as operações e diz:

- Quando eu disser três, tu levantas o chapéu que eu apanho o pássaro… estás pronta? Vai, um, dois e três. – O Zé com gana atirou as mãos de tal forma, que nem que fosse uma carriça escapava à rapidez do golpe. Foi tal a velocidade com que o Zé atirou as mãos que sentiu espirrado para a cara, um bocado daquela massa mole ainda quente. A sorte da Ermelinda foi não ficar a admirar a sua obra e desatou a fugir, escapando à fúria do Zé. O Zé, a partir daquela altura ficou conhecido como Zé Perdigoto, coisa que o exasperava e jurou vingar-se daquela maria-rapaz que tinha a mania que trepava a uma árvore melhor do que ele.

Passado meia dúzia de anos, o Zé viu finalmente concretizada a sua vingança, quando à frente do padre, viu a Ermelinda a dizer sim que seria sua esposa, na saúde e na doença, até que a morte os separasse

Com um grande sorriso perante esta lembrança, a tia Ermelinda perdoou ao Carlitos

Quem não tinha parado de rir, eram os outros pequenos, perante os gestos exagerados da Maria, filha mais velha da Celeste, a imitar a aflição da tia Ermelinda.

- Então! Então chega de paródia, vamos a isto que ainda há muita terra p’ra virar. - Diz o senhor António.

A dona Gracinda regressou a casa na companhia da Maria para tratar do jantar, Carlitos acompanhou-as, com a incumbência de trazer mais um garrafão de vinho.

Continua na 2ª parte

Lorde
Enviado por Lorde em 22/10/2013
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