O VIZINHO DE CIMA
1994. Fazia algum tempo que ele mudara para aquele condomínio. Havia se separado, sua vida se desorganizara, seu salário encolhera ainda mais pois agora tinha que pagar pensão aos filhos.
Pouco ou quase nada lhe sobrava. Viu-se obrigado a abandonar aquela cervejinha das sextas feiras com os amigos. Tinha vergonha de não poder participar das despesas.
Suas noites eram tão vazias que passou a fazer hora extra no escritório, não só porque o ajudava a pagar as contas, mas também porque preenchia o enorme vazio que viera com seu retorno à vida de solteiro.
Não tinha sido fácil encontrar aquele pequeno apartamento conjugado, cujo aluguel e taxas cabiam em seu apertado orçamento. O prédio era enorme, trinta apartamentos em cada um de seus doze andares, poucos moradores não tinham animal de estimação.
Quem se postasse à sua frente por alguns minutos poderia pensar que se tratava de um zoológico vertical, dado a diversidade de animais que saiam a passear com seus donos. Havia de tudo, de macaco a tartaruga, sem falar nos inúmeros cães, gatos e papagaios e do galo da senhora solitária da pequena cobertura, que o comprara ainda pintinho e o tratava como um filho, pouco se importando com as reclamações da vizinhança, pois antes do sol nascer, o danado voava para parapeito e soltava seu longo canto várias vezes seguidas e despertava o prédio todo.
- Um dia ainda subo lá em cima, pego esse desgraçado e dou-lhe um nó no pescoço – pensava ele que morava dois andares abaixo.
O prédio era realmente terrível, embora bem localizado, qualquer “comunidade” perdia fácil para ele em sujeira e desrespeito ao próximo. Consciência de coletividade? Nenhuma. Isso sem falar dos três bares nas lojas abaixo dele, cujos donos subornavam o síndico, e promoviam aqueles forrós à sextas e sábados.
O edifício era a verdadeira sucursal do inferno, mas para ele, nada era pior e mais irritante que seu vizinho de cima. Ele o odiava, e o outro que já havia se dado conta disso, pois ele fez a bobagem de reclamar com o síndico do barulho que ele fazia arrastando móveis, o sacaneava o mais que podia.
Uma das poucas alegrias que lhe restaram era o amor por seu clube de coração, do qual tinha uma enorme bandeira que colocava em sua janela, e esvoaçava alegre depois de uma vitória do time. Para seu azar, o vizinho de cima era torcedor do rival, e daqueles roxos, capaz de empurrar um “inimigo” no rio Tietê sem dó nem piedade se sofresse gozação. Resultou disso que depois de uma vitória sobre o rival, ele, alegre estendera sua bandeira na janela.
Uma verdadeira afronta para o outro, que esperou anoitecer, e simplesmente quando a bandeira esvoaçava, atirou-lhe ÁGUA SANITÁRIA.
Pela manhã quando ele a recolheu, não a reconheceu. O escudo em seu centro havia se transformado no retrato de um monstro. Ele sabia quem havia sido o responsável pela “indignidade”, mas não podia acusá-lo, nem vingar-se. Não era de briga, além do que era pequeno e franzino. Guardou seu ódio, suportando o risinho de deboche do outro quando se encontravam, por acaso, no elevador.
Copa do Mundo dos EUA. Todos ligados na partida da semifinal, contra ao Holanda. O Brasil venceu, alegria se espalhava pelas ruas do país, milhões de pedaços de papeis picados atirados pela janela, e justo no momento que ele chegava à sua o “inimigo” de cima abrindo as mãos deixava cair sobre sua cabeça uma quantidade enorme desses papéis . Ventava, e ele por estar imediatamente abaixo do outro, teve seu apartamento invadido por aquela cachoeira de papéis.
Ficou furioso. Sabia que o outro tinha feito de propósito. Esperara que ele chegasse à janela para solta-los, mas nada fez além de, irritado, passar o resto da tarde varrendo e limpando o apartamento. Haviam papeizinhos espalhados até em seu pequeno banheiro.
Quando terminou a inesperada faxina que se viu obrigado a fazer. Sentou-se no sofá diante da TV e notou que entre as folhas de uma planta, que ele tinha num vaso próximo à janela restava apenas um pedacinho de papel. Levantou-se pronto para recolhê-lo e ia atirá-lo fora, quando reparou que se tratava de, possivelmente, um pequeno recorte de um balanço contábil. E viu nele impresso um número de exatamente dez algarismos, ou seja cinco dezenas.
... Que engraçado! De tanto lixo que esse cretino soltou lá de cima sobrou só esse pequeno retalho e numerado. - pensou.
Resolveu então, guardá-lo, quem sabe seria um palpite? Não tinha hábito de jogar em loterias, aliás, nunca o tinha feito.
Mês seguinte, encontrara com o vizinho no térreo enquanto os poucos móveis que tinha eram colocados em uma caminhonete. E este com ar de deboche:
- Pô meu, você está se mudando? Não me diga que vou perder o melhor amigo que tenho no prédio? – e deu um risinho irônico.
- É estou saindo para um lugar um pouco melhor. Deixei meu endereço em um bilhete por baixo de sua porta, no caso de você, tão bom camarada, querer me visitar para tomarmos um vinho, ok?
O outro achou estranho, despediu-se e, curioso, subiu ao apartamento. Entrou, abaixou-se, recolheu o bilhete e ficou desconcertado:
“Pois é, desde que me mudei para cá, você tem me sacaneado. Confesso que senti vontade até de matá-lo, porém nunca reagi às suas provocações, talvez por saber que no fundo você era mesmo um amigo, que só queria minha felicidade. Obrigado pelos papéis que atirou sobre mim depois daquele jogo e que invadiram meu apartamento. Um deles continha um pequeno bilhete premiado que eu só fiz confirmar fazendo um jogo da quina, que eu nem sabia estava acumulada, e que ganhei sozinho. Espero poder recebê-lo um dia em meu futuro novo endereço, Avenue des Champs Elysées, 436 – Paris – França.
Quanto a você desejo que continue jogando a sorte para os outros pela janela, você é realmente um cara bom. Abraços e obrigado.
Ah! Ia me esquecendo.Curiosamente, o papelzinho caiu sobre a folha de uma planta que tinha em um vaso próximo a janela chamada COMIGO NINGUÉM PODE.
Jogon Santos.