O HOMEM QUE NÃO TINHA CELULAR

Beto é daquele tipo de sujeito que acorda feliz às cinco da manhã em plena segunda-feira. Toma seu café assobiando Jorge Ben e encara a condução com uma disposição invejável.

A viagem ao Centro passa rápido. Conversando sobre qualquer coisa com os outros passageiros o tempo voa. Ou melhor, voava.Pois a disseminação do celular mudou um pouco as coisas para Beto.

No início, Beto achou que tratava-se de moda passageira. Uma ligação recebida, outra efetuada mas todos ainda pareciam preferir o diálogo olho no olho.

O tempo passava e a angústia de Beto aumentava. O ônibus viajava cada vez mais em silêncio. Beto chamava Fábio que jogava no celular. Beto gritava Dudu que entretido não ouvia por causa dos fones. Com dificuldade Beto achou Marta na traseira do ônibus disponível para troca de algumas palavras.

No fim daquele mês, Beto adoeceu e ficou quase dois meses de molho em casa. Quando finalmente foi liberado cumpriu seu ritual. Acordou cedo, tomou seu café cantando e subiu no ônibus ansioso para rever seus amigos de jornada.

O silêncio dos passageiros era mórbido.Dava para ouvir cada engrenagem do motor trabalhando. Mas o que verdadeiramente chocou Beto era o fato de todos olharem para baixo. Levou certo tempo para Beto entender que as pessoas não procuravam dinheiro no chão, mas olhavam sim frenéticas para os celulares em suas mãos. Levou menos tempo, porém, para Beto deduzir que o silêncio vigente não vinha da ausência de conversa, advinha justamente do excesso de conversa escrita e não falada.

Cabisbaixo,Beto via suas sucessivas tentativas de diálogo naufragarem. Seus amigos negavam sem falar, apenas grunhindo sem sequer levantar a cabeça.

O ponto de destino se aproximava e Beto viu em Marta, de novo, sua grande esperança de conversa.

- E aí Marta, tudo bem?

-De novo?Acabei de responder Beto!

-Como assim? Perguntei só agora.

-Postei na rede tem mais de trinta minutos que estou bem.Viu não?Eu hein...que mundo você vive?

Atordoado, Beto meditava sem responder. Como em um pesadelo , já torcia para chegar ao seu destino e fugir daquele silêncio ensudercedor.

Marta, talvez querendo amenizar sua rispidez,comentou mesmo sem erguer a fronte :

-Esse tempo não muda né Beto?Só chove! Cadê o sol?

-Hãn?! O tempo mudou desde ontem. O sol está lindo.Dia de céu claro.Experimente levantar a cabeça e apreciar a paisagem de vez em quando.

Marta pareceu não se importar com a crítica. Talvez, por causa do som nos ouvidos, sequer tenha ouvido.

Enfim, e resignado, Beto desce e anda até seu trabalho. No caminho se pega observando a vitrine de loja de modernos celulares. Olha.Observa.Cogita.Mas logo desiste de comprar um. Chega a conclusão de que a conversa silenciosa dos seus pensamentos é suficiente.E Beto segue sua rotina. No ônibus vai olhando pra cima, apreciando o céu e assobiando com os pássaros em um sagrada conversa

Dú Godoy
Enviado por Dú Godoy em 20/10/2013
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