Deixa a água rolar...
Roberto tomava seu banho naturalmente, como quem não queria nada e como quem nunca ligara para os alardes da mídia sobre um tal de “aquecimento global”, eram minutos e minutos sob o chuveiro, as águas acalmavam seu dorso estressado e ele se punha do lado direito do boxe a ensaboar o corpo senil. Como quem não tinha trabalho a realizar...
Enquanto de um outro lado da cidade Jussara, garota morena, bonita, cabelos encaracolados como anedotas sem fim, pernas torneadas pelas ladeiras do morro Bom Jesus, e em baixo deles, pouquíssima história para contar, tomava seu banho, esquentava o dorso frio, das horas que passara lavando pratos, esquentando panelas, vestindo aventais. Jussara trabalhava na casa de Seu Roberto, desde pequena ocupou o lugar da mãe Cícera, que faleceu aos 56 anos de uma morte pouco investigada, sobrava a garota a fé em Deus, a fé na vida e o ossos do ofício que não lograra êxito.
Na casa dos Bandeira o serviço era pouco e a rotina conhecida tornando tudo um tanto quanto mecânico para a garota do interior. Chegava às 6 e meia, e mal tinha tempo de descansar as pernas abatidas, já ouvira o pigarrear de um Roberto acordado pelo serviço. Tomava de toda a coragem que possuía e ia trocar de roupa, colocar o avental, encarnar o papel, seguir a profissão... de pé e com fé. Coava o café, estendia as roupas, passava as fardas das crianças, fritava os ovos, colocava perfume, limpava privadas, descia com o cachorro... Ufa! Êta rotina besta, meu Deus...
Para Roberto a vida vinha se arrastando, e ele vivido como é vinha se esgueirando nos anos parcos, acordando cedo, lendo o jornal, tragando o café, bebendo o cigarro, correndo contra o tempo da rotina inabalável. Seu casamento não tinha o neobarroquismo de Vinícius, muito menos as nuances de uma tela de Picasso, era a morbidez de Bandeira, num casamento dos Bandeira, a vida corria solta, sem amor, rotineira, maltrapilha, levada, leviana, usada... Como quem um dia não almeja demais, Roberto tenta uma investida na moreninha da casa. Convida-a ao quarto do casal, propõe um vinho, uma dança, um Chopin a meia-luz, e a menina que pouco teve na vida, aceitou a bebida, a cama, a despedida, virou dona da casa sem os holofotes.
E a vida seguia faceira para ele, corriqueira para ela, juntos, pouco almejavam dessa vida. Tinham fé no Menino Jesus, rezavam toda noite, e tomavam banho; ela frio, ele quente. Sempre ao lado direito do boxe de mármore branco que lhe custara uma nota. Poucas vezes o casal se viu numa encruzilhada, a dona da casa vivia sempre presa aos costumes da burguesia, aos chás ingleses ou aos cuidados da cria, chegava tarde, Roberto a dormir, e Jussara, no ônibus apertado, rezava a Deus para continuar a trabalhar...
Tudo seguia nos conformes do teatro da vida hipócrita, até que folheando o jornal de todo dia, Roberto lê a manchete da página de Utilidades e encontra o resultado de mais uma pesquisa dessas realizadas num daqueles centros enorme de lá de cima, que pesquisam coisas inúteis, mas para um velho aventureiro nada mais direto do que aquela manchete: “Pessoas que traem, tomam banho ao lado direito do chuveiro, prevendo um confrontamento da porta”. Foi a gota que faltava para o banho da consciência, Roberto ficara impressionado com a notícia, mas a vida ia seguindo e ele decidiu mudar de lado, agora o banho era feito ao lado esquerdo.
Jussara, a garota que pouco devia a vida, continuava a ser a segunda opção. Trabalhava, limpava, cozinhava, lustrava, agradava ao patrão e, de noite cansada, pegava seus ônibus, subia a ladeira, entrava em casa e tomava seu banho alternadamente, lado esquerdo, lado direito, de acordo com o que lhe aprazia, seguindo a direção dos ventos mandados por Deus que por ora esfriavam seu corpo nu.
E daquela que poucos se lembram, Dona Bandeira chegou tarde em casa, desceu de seus saltos Luís XV, limpou com o guardanapo seu batom escarlate, subiu as escadas com as pernas fatigadas e como de praxe deu beijos nas crianças e partiu rumo a seu quarto, atirou duas vezes no peito de Roberto, ligou para dispensar os serviços da empregada Jussara e, por fim, tocou fogo nas roupas, se fingiu de louca e foi ao banheiro lavar-se. E ficou do lado direito do boxe.
Gabriel Amorim 22/09/2013 http://devaneiospalavras.blogspot.com.br/