Vidraceiro ou vidreiro?
Meu avô materno Jacintho comunicou seu casamento com minha avó, Innocencia em 22 de dezembro de 1892. Mandou imprimir belíssimo cartão ornamentado por uma ramada em que o verde era em 2 tons, as flores em azul claro e escuro; muito bom gosto. O início das lembranças que tenho dele, é do tempo que aos 2 ou 3 anos, me punha no colo, protegidos por um guarda-chuva, para que eu pudesse ver as vacas que andavam pelo descampado de Ricardo de Albuquerque e pudesse conversar com a vizinha, D. Maria, a quem gostava de xingar equilibrando a chupeta entre os lábios. Chamava a vizinha para conversar e a mandava para a puta que a pariu! Criança precoce em talento pornográfico! Anos mais tarde, pelos meus 10 a 12 anos, encantava-me a maneira com que ele tratava os vidros comprados pelas ruas; cuidava-os convenientemente e os revendia, de preferência, às próprias indústrias de onde saiam. Carregava enormes sacos sobre os ombros largos e cansados dos trabalhos noturnos de guarda-cancela; surpreende-me que jamais tenha havido um desastre de trem, durante sua longa gestão na cancela de Ricardo de Albuquerque. Lavava os vidros que comprava pelas vizinhanças, e contratava os netos para ajudar na lavagem, pagando um preço combinado; jamais pediu que se lavasse os vidros sem qualquer paga; de graça somente a comida que ele nos dava, o pão e o açúcar para temperar as limonadas servidas em latas de aveia Quaker. Nada sabia a seu respeito, pois, tinha o salutar hábito de jamais conversar; meu avô não conversava! Gostava de beber cachaça barata, dando-nos um belo exemplo de brasilidade com a saudável caninha. Costumava dizer que tudo que eu fazia era bem feito, embora não gostasse de trabalhar, preferindo as orgias próprias da idade dos 11 e 12 anos. Seria mais compensador, que as crianças fossem para os canaviais cortar cana para enriquecer os usineiros, para que esses pudessem mandar seus filhos estudar na cidade grande, com apartamentos alugados, comprando bons livros, alimentando-se bem e comendo as putas, que por acaso aceitassem pagamento em notas de 10 mil réis. Eu sempre me perco e esqueço, como agora, que tratava de assuntos referentes ao pobre subúrbio de Ricardo de Albuquerque, onde na melhor das hipóteses, encontraríamos sítios com jaca manteiga e goiaba vermelha; nunca extensas áreas de cultivo da cana de açúcar.Segundo constava na família, ele teve um distúrbio mental por grandes prejuízos que teve em seu comércio, resultando na vinda da família de Paraíba do Sul, para o Rio de Janeiro. Gostava de vê-lo rachar lenha, onde utilizava dormentes da estrada de ferro, acho que eram dormentes já muito usados, queimados pelo carvão incandescente largado pelo Maria fumaça, trens a carvão que trafegavam naquela linha. Usava umas cunhas com as quais ia abrindo o âmago da madeira, usando o corte e a cabeça do pesado machado. Ninguém se preocupava com a nossa abusada tentativa de usar o machado, como era hábito meu e dos primos, com risco de decepar um dedo dos pés, ou mesmo ter graves lesões na perna; tudo era normal, nada tinha riscos; mesmo se andássemos equilibrando-nos nos trilhos do trem, como freqüentemente eu fazia, quando levava a marmita de meu avô, para seu almoço na cancela da estrada de ferro. Ele costumava comer de cabeça baixa, deixando ver a calvície entre os cabelos brancos; somente muitos anos depois, pude perceber, que aquele estilo simplório significava um século de humilhações, que lhe pesavam sobre a cabeça, curvando-a. Era um século de humilhações, de morar em casa de favor, sem água, sem luz; do chão de cimento pouco liso, do trabalho árduo carregando sacos de vidros e gritando - vidraceiro! Trabalho árduo de dias e noites na cancela do trem, ocupando uma guarita defronte o portão do cemitério, vendo passar as almas penadas, fantasmas dos desgraçados e dos paupérrimos. Enquanto isso, Dr. Artur trafegava em vistosa baratinha amarela, comandando na qualidade de delegado, os acontecimentos daquela comunidade de sofridos e humilhados. Getúlio Vargas era o ditador àquela época, e se dizia o pai dos pobres. Meu avô teve o chamado derrame, não teve qualquer assistência de serviço médico público; foi tratado por um médico de fundos de farmácia; não lembro se atendia a cavalo e de esporas ou se ia caminhando, encardindo o terno preto; meu avô morreu quatro anos depois, sem falar e tetraplégico. Acho que tenho sido injusto com sua memória. Preciso voltar ao assunto com mais discernimento!