CEM DIAS SEM LAÇOS - Cap XVI - Dia de sábado
Miguel sentou-se em sua cadeira de leitura colocada estrategicamente na varanda da casa simples de bairro, entre as samambaias choronas de D. Altiva com as quais ela e Ângela conversavam carinhosamente e para as quais ele lia todas as tardes, pelo menos por uma hora de prazo, com a condição de que elas ouvissem seus pensamentos; E pareciam ter essa capacidade. Quando ele se pegava naqueles trechos a que dava o nome de epifania do autor, que por si só valiam o grosso volume, normalmente inchado a custo de muita lengalenga, ele normalmente interrompia a leitura, tirava os óculos e contemplava as vaidosas plantas que pareciam estar realmente acompanhando a história. Pelo menos era inegável o fato de que eram seres vivos. Dengo veio deitar-se a seus pés apoiando o focinho sobre as patinhas dianteiras a observá-lo com olhos amorosos como se quisesse dizer que sentira sua ausência
Aquela cadeira ele a cobiçara desde que a vira pela primeira vez. Era uma peça maravilhosa, em sucupira maciça, de incalculável idade. Era ainda menino quando botou nela os olhos pela primeira vez. Pertencia a um velho solteirão, leitor compulsivo e homem de muita cultura, vizinho e amigo de seus pais. Chamava-se Godofredo Gusmão, último remanescente de tradicional e abastada família local, perdida em decadência, como qualquer império, nas inexoráveis curvas do tempo. Tinha o cobiçado móvel alto espaldar de madeira polida e acolchoado revestido em couro de cabra curtido com sapiência incomum por algum artífice singular. O largo e confortável acento também tinha tal revestimento que mantinha as cores naturais do animal de bela pelagem muito branca com pintas alaranjadas. Tinha ainda confortáveis descansos ergonômicos para os pés e para os braços. Estes últimos eram também compartimentos com graciosa tampa onde se guardavam os livros de preferência do leitor. Quando Godofredo ficou velho e não podia mais ler, Miguel passou a ser os seus olhos, em compensação passou a ter acesso à sua vasta biblioteca. Daí a herdar a cadeira foi só um pulo. Numa tarde sombria de março, num ano qualquer perdido nos longes do tempo, Seu Fedo, era assim que os amigos lhe chamavam, já nonagenário, num de seus momentos de lucidez, disse à D. Josefa, sua fiel cuidadora, que incumbisse o moleque Miguel de desaparecer com a relíquia. Sabia que o traste era um anseio do jovem amigo. No dia seguinte, após o cochilo da sesta, D. Josefa encontrou o patrão frio, já duro como pedra. Morrera sem qualquer alarde, como vivera. Familiares longínquos acorreram de toda parte, como mosquito na merda, gente que nunca viu o velho Fedo, pleiteando legados. Em questão de dias derreteram o patrimônio sucateado do pobre ex vivente. Mas a cadeira de leitura já estava em poder de Miguel.
Agora ali estava ele sentado no seu antigo objeto de desejo, na sua modesta varanda antegozando o instante de abrir o primeiro dos seis volumes da Saga do País das Gerais, de Agripa Vasconcelos. Não fora fácil conseguir aquelas outras relíquias. Tinha visitado inúmeros sebos, e a resposta era sempre a mesma. Achava-se um volume apenas, separadamente, quase sempre em mau estado de conservação. O que ele mais queria, o “Sinhá Braba”, nunca havia encontrado. O delegado Benito Nunes, seu amigo pessoal, conhecedor dessa sua paixão, apareceu-lhe no dia da sua festa de cinqüenta anos com um belo pacote debaixo do braço. A casa estava cheia e os amigos traziam os presentes mais inusitados; o antigo parceiro de gravações em estúdio, Washington Lorca não compareceu, mas mandou-lhe pelo correio uma caixa com cinqüenta palhetas, nenhuma igual à outra, sabia que era um presente de baixo custo, mas que certamente exigiu muito tempo, o professor Rogério Gomes enviou-lhe antecipadamente cinqüenta garrafas de cerveja exigindo que estivessem geladas na hora da festa, seus alunos da tarde da Escola Municipal Rui Barbosa enviaram-lhe um pacote colorido com cinqüenta cuecas, bem a cara daquela cambadinha. Muitos outros amigos o surpreenderam pela criatividade com que procuraram lhe agradar, mas o delegado Benito superou a todos por conhecer-lhe tão profundamente os anseios. Foi mesmo uma grande prova de amizade. Chegou acompanhado da jovem esposa Ester, deu-lhe aquele enérgico abraço de sempre e entregou-lhe o presente. Abriu entre vivas de uma gente alegre e ali estavam cinco volumes da Saga do País das Gerais, lindamente encadernados em capa dura azul frança, ainda cheirando a novo. Por dentro de cada volume as velhas páginas amareladas e a capa flexível original da edição de 1966, com reprodução de pinturas famosas como A Colheita de Trigo, de Pieter Breughel datada de exatos quatrocentos anos atrás. Benito percebeu com um brilho nos olhos como o amigo procurava pelos títulos em letras douradas qual era o volume faltoso e... Bingo! Sinhá Braba! Até nisso o respeitável baixinho havia acertado. Faltava exatamente o volume que Miguel mais queria. Como os olhos de uma pessoa podem deixar transparecer alegria e decepção de uma só vez daquela forma? Só mesmo os de uma pessoa tão sincera como Miguel.
_Sinto muito amigo. Um livro por década. Quando fizer sessenta prometo lhe trazer o que falta.
Miguel estreitou o amigo baixinho, do mesmo jeito que faria um urso ao seu filhote. Ester Nunes, porém os interrompeu:
_ Ei, Miguel! O meu presente.
Ester também era de baixa estatura e ergueu-se nos delicados pezinhos para receber o carinho emocionado do velho urso.
Novos vivas enquanto Miguel abria o delicado pacote e... Surpresa! Lá estava o Sinhá Braba, da mesma edição, com a mesma luxuosa encadernação...
No dia seguinte à sua festa de aniversário Miguel viajara para São Paulo onde tinha uma gravação por isso, só agora, uma semana depois ia iniciar a leitura do primeiro romance da série. Andrei estava jogando futebol de salão, que ele e seus amigos tinham um horário na quadra às 16h. Altiva e Ângela se embonecavam no quarto da moça. Dificilmente elas gastavam com salão de beleza, ajudando-se mutuamente elas passavam as tardes de sábado naquela ocupação que tinha ainda a propriedade de estreitar os laços de amor entre mãe e filha. O barulho do secador e trechos de conversa chegavam até os ouvidos de Miguel, o que longe de incomodá-lo ou tirar-lhe a concentração dava-lhe um grande prazer. Eram sons do seu lar. Da sua família.