Livre de Si

É humano. E só.

Um mortal, como todos.

Passível de erros (grandes também) com todos, passível de fracassos e arrependimentos. Levou 30 anos para descobrir isso: era humano e só.

O sentimento de culpa que carregou durante todos os dias desta vida o tornaram uma criança quieta, sombria, assustada e medrosa. Na adolescência se prostituiu, se viciou em drogas, dirigiu bêbado. Quis se matar de todas as formas.

Aos 15 anos tentou o primeiro suicídio. Na verdade quis chamar a atenção dos pais, um apelo: por favor! Eu estou doente. Me ajudem! Me salvem!

Seus pais não entenderam e ele foi internado num hospital psiquiátrico. Estava louco, diziam seus pais aos familiares. “Nem pode receber visitas”, alegavam.

Viveu no hospital até os 18 anos. Diagnóstico: Depressão profunda. Teria que tomar remédios por um bom tempo além de fazer terapia toda semana.

Alta. Foi para a casa.

Agora carregava dentro de si, além da culpa inconsciente, muito ódio. Fingiu ser um bom rapaz, se comportou bem enquanto pensava na segunda tentativa de suicídio.

Comprou venenos e bebida alcoólica. Era só duas doses e ... pronto!. Tudo se acabava novamente.

Se odiava. Odiava todos mas se odiava mais. Os dias eram sempre nublados em seu espírito, em sua mente espíritos obsessivos o atacavam incessantemente. Mais uma dose... Por que eu não morro Deus? Me leva logo! Por favor...

Angústia. Não conseguia nem se matar. Fracassado. Derrotado pela vida e rejeitado pela morte. Rejeitado sempre. Se esquecera que até tinha irmãos. Em seu mundo sombrio só existia ele e a sua escuridão.

Quando criança, na idade em que ele mesmo não se lembra viu o seu pai bater em sua mãe milhares de vezes. Desespero. Susto. Medo. Angústia: mamãe vai morrer?

Era sempre assim todos os finais de semana. Sempre assim. Então sua mente não suportou. Adoeceu em sua alma ainda tão frágil e indefesa. Carregou dentro de si a culpa por não poder arrancar a mãe dos braços cheios de ódio do pai. Sua mãe se sufocava e gemia de dor. Ele chorava sem fazer qualquer barulho. Sua irmã, ainda mais nova, gritava histericamente. Seu irmão, o mais velho dos filhos, tentava separar o pai da mãe mas era socado de porradas pelo o mesmo.

Vivera ali, sua primeira morte. E dali em diante, se sentia um fraco, um covarde, um monstro por não defender a mãe do pai, que ele também tanto temia. Não tinha nenhum respeito pelo pai. Só medo e raiva e medo.

Ainda criança, não lembra a idade, foi abusado sexualmente pelo irmão mais velho. Na adolescência ao se descobrir gay, foi reprimido pelo irmão que disse sem pensar duas vezes “Papai prefere um filho morto, bandido, drogado do que um gay em casa! Se papai souber que você é gay ele te expulsa de casa!” Tinha apenas 13 anos quando ouviu isso.

Viveu cheios de medo de si e dos outros. Se odiando e se odiando. Numa escuridão cada vez mais presente em sua consciência viveu se culpando de tudo. Mania de se culpar, sem perceber. Ele nunca era o bastante. Era sempre menos. Era perfeccionista, obsessivo e dramático. Carregava no espírito o seu caos constante e na tentativa de sobreviver à este se tornava cada vez mais auto-destrutivo e destrutivo. Vivia morto.

Mas sua obsessão em saber o salvou. Livros e mais livros devorados na tentativa inconsciente de se “ressuscitar”, ele então se tornava cada vez mais inteligente. A mente que absorveu mais do que ele podia aguentar tentava à toda sanidade ressuscitá-lo, resgatá-lo das sombras do passado.

E hoje aos 30 anos de idade, ele só quer ser mais um ser humano. Livre do passado, novo e leve em seu espírito. Livre de todas as dores ainda existentes em sua memória onde sua vida lhe foi roubada e morta precocemente. Livre de tudo que sentiu, livre de tudo que ouviu. Livre de tudo que não suportou.

Só livre de si mesmo.