CEM DIAS SEM LAÇOS - Cap - XV - Insights alcoólicos

A tarde estava mais fresca, a chuva da véspera, fraca e passageira parecia ter se prestado a amenizar o calor que nos últimos dias estava sufocante. Um ventinho zombeteiro brincava nas copas das árvores e chamalotava as águas do rio, de quando em quando ouvia-se o tiplof característico de um anfíbio que saltasse da margem para a água ou de um peixe que emergisse em busca de uma semente que boiava, ou de um invertebrado desprevenido que deslizava sorrateiro pela superfície serena do remanso. Alberto começou a ficar apreensivo, Sabonete já deveria ter chegado “Amanhã vou seguir viagem até o Rio Pará. Vou passar o domingo pescando. Tenho os apetrechos no carrinho.” Não foi isso que ele disse? O que terá acontecido?

Estava deitado sobre a pedra com a mochila a guisa de travesseiro. Ergueu-se, provou um trago da cachaça do Dr. Lauro e acomodou-se novamente. O estômago já reclamando algum alimento. Se Sabonete aparecesse com certeza teriam uma boa refeição. Quem sabe até uma fritada de curimbatá ou um ensopado de mandi amarelo? Mas... Nem queria pensar na hipótese dele não vir.

As cigarras insistiam no seu canto incessante. Agora deviam ser dezenas delas num trrriiinheinheim medonho. Bichinho esquisito! Dizem que sua larva leva dezesseis anos para se metamorfosear no inseto que vive apenas vinte e quatro horas. Será?

Que bom que se livrara do Ulisses, agora podia deixar a mente vagabundear sem culpa alguma,sem a obrigação da leitura, mas sentia falta de ler. Firmou um propósito de, na próxima cidade, adquirir um bom livro. Ler para ele era vital. Quase como se alimentar. Admitia, sem conflitos internos, que era influenciado pelos livros embora nunca admitisse ser influenciado por pessoas, ria agora de tal inverossimilhança. Como se os livros não fossem escritos por pessoas. De novo sob o efeito do álcool, percebe como os pensamentos vinham numa avalanche. Incrível como ia rápido para a sua corrente sanguínea! Tinha uma intimidade muito antiga com aquela sensação. Desde os tempos de estudante. O álcool, nas primeiras doses tinha a propriedade de lhe trazer insights. Idéias incríveis já lhe haviam ocorrido nessa etapa pós primeiro gole, só que nem sempre conseguiu salvá-las. Se não tomasse nota imediatamente perdiam-se na progressão da euforia, como borrões de tinta derramada sobre um esboço lindamente delineado.

Um bando de maritacas acercou-se de uma árvore próxima que se debruçava sobre o rio. Chegaram numa alegria escandalosa, arrancando Alberto de seus devaneios. Ficaram por ali num tremendo vira e mexe, soltando seus gritos estridentes, pendurando-se às vezes pelas patinhas e esticando o pescoço verde, a cabeça coroada de vivo alaranjado, para alcançarem a frutinha amarela que estouravam com o bico, desprezando o caroço que ia cair da água para a alegria dos peixes. Ocorreu-lhe a lembrança do Pe Clemente que sempre procurava convencê-lo da existência de Deus usando esses pequenos eventos naturais. Deus nos fala a toda hora, meu filho, por meio dos bichos, das plantas, de toda a criação enfim. Você é um milagre! Cada parte de você. Sabe como funcionam seus olhos, seus ouvidos, o seu sistema nervoso, o seu cérebro? A complexidade de tudo isso! Você é um ser único, singular. Não existe entre cinco bilhões de semelhantes seus, nenhuma cópia idêntica sua. Sua personalidade, suas impressões digitais, sua Iris, tudo tem um projeto próprio e único. Estou falando só desta sua pessoinha feia – ele troçava- imagine se formos levar em conta a beleza das mulheres, o talento de Mozart ou de Da Vinci, cá pra nós brasileiros, milagre ainda maior dadas as circunstâncias, de Aleijadinho. Meu caro, se você não acredita que há uma inteligência superior por trás de tudo isso. Um engenheiro, um projetista. Sei lá o nome que queira dar ao verdadeiro autor dessa coisa toda, se acredita que este jornalista talentoso que tenho à minha frente evoluiu mesmo de uma ameba, então estou gastando saliva à toa. Já meio bêbado e cansado demais pra argumentar, que esses sermões só vinham depois de algumas horas de cantoria ou de algumas quedas de buraco, e considerando a amizade que tinha pelo velho clérigo, Alberto achava melhor não replicar.

As maritacas se retiraram de repente. Com certeza iam procurar seus ninhos. Já ia ficando tarde. Alberto incomodado com a demora de Sabonete ergueu-se, tomou mais um trago e decidiu subir à margem da rodovia a ver se avistava o companheiro. Começou a subir o acesso íngreme e percebeu angustiado que a frieira, silenciada pelo tratamento recebido na véspera, curativo, as meias limpas e o tênis novo, voltava a incomodar. Uma serra muito a pique que força a curva em s da rodovia a oeste do rio impedia a visão do poente ao passo que sombreava todo o vale que se estendia do lado leste. De certa forma era triste a visão. Ou era só um reflexo do que ia em seu espírito? Sabia-se que o sol ainda não se pusera, mas uma montanha se interpunha entre ele e Alberto. Observou a estrada até onde a curva a fazia se meter por detrás do monte e em todo o seu raio de visão não havia viva alma. Mesmo o trânsito de veículos não era tão intenso como de costume.

Melancolia. Era o que sentia. Admitiu para si mesmo. Mas, por quê? Não conhecia o medo, não fora educado para sentir culpa, diferentemente de Ângela cuja crença religiosa a fazia culpada de existiram os flagelados da seca ou das cheias, da fome na Etiópia. Ela tinha problemas em ter uma refeição farta, num domingo alegre de sol sem sentir-se culpada por tantas famílias pobres não terem a mesma sorte. Era doentio. Não podia tomar um sorvete sem pensar no Elvinho. Quando via um bêbado lembrava-se logo do Gato Guerreiro e sofria por não haver insistido mais em seu tratamento. As desigualdades sociais, de certa forma, eram todas por culpa sua. Com ele não. Fora criado longe da religião e sem frescuras. O pai sempre metido em política, fazendo oposição ao regime militar. Não foram poucas as vezes em que esteve foragido além das fronteiras ao sul do Brasil. Quando voltava dessas aventuras infrutíferas estava magro e barbudo, os cabelos compridos amarrados num rabo de cavado que as pessoas ditas de bem olhavam com indisfarçado desdém. Vinha com a cabeça cheia de ideais e citando Che Guevara num castelhano trôpego: “Hay que endurecer, pero si perder la ternura jamás.” A mãe alienada vivia com a cara enfiada nos livros. Romances macarrônicos, de preferência americanos, que seu projeto de vida era viver nos EUA. Quando não estava socada na literatura água doce produzida aos borbotões, com interesse puramente comercial, com destino certo de encher de titica as mentes do terceiro mundo, estava diante do velho televisor buscando velhas fitas de Hollywood, que seu conceito de chic tinha muito a ver com a baranguice importada. Crescera nesse universo inócuo e improdutivo, cará com batata, diria Miguel, e herdara a intrepidez guerreira e inconseqüente do pai desacerbada pelo romantismo doentio e alienante da mãe. Agora estava ali. Triste, deprimido, sem saber o que fazer. Mediu cautelosamente a situação. Se ficasse e Sabonete na viesse iria sentir uma terrível solidão. Fome também. O melhor que tinha a fazer era apanhar a mochila e seguir adiante. Sabia que a alguns quilômetros havia um povoado, Limas era o nome. Com certeza não lhe negariam um prato de comida.

Desceu até o rio onde havia deixado a mochila e experimentou uma outra estranha sensação. Medo. Não sabia de quê, mas sentia medo. Era absurdo e irracional, mas na medida em que adentrava o lugar onde passara boa parte do dia era tomado de uma terrível apreensão, como se algum perigo estivesse à espreita. Se lá em cima estava tudo sombrio, ali embaixo já era difícil divisar as coisas com sua miopia e seus óculos embaciados. Apanhou seus pertences e subiu ligeiramente o acesso. Enquanto galgava os disformes degraus de pedra ajeitava nos ombros as alças da mochila. Parou, tomou mais um trago de cachaça e chegou ao acostamento respirando aliviado.

Não havia empreendido dez passos em cima da ponte e foi surpreendido por um veículo que freou bruscamente. Era uma viatura da Polícia Militar de onde saltaram dois policiais já com arma em punho. Lembrou-se dos inúmeros casos que acompanhou em seu tempo de repórter e já colocou as mãos na nuca. Seu olhar de jornalista identificou o SD Silva que com mãos impetuosas e certo ar de importância lhe fez uma minuciosa revista.

_Limpo, senhor!

O Senhor CB Nogueira respondeu com muita imponência:

_De qualquer forma ele vai. È ruivo e em atitude suspeita. Temos que levar a alguma coisa pro Baixinho Nervoso.

Quando lhe metiam as algemas Alberto perguntou com bons modos:

_Qual é a acusação, Sr. CB Nogueira?

_Assassinato do andarilho vulgo Sabonete.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 18/10/2013
Código do texto: T4530555
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