CONVERSA NO MUSEU

Vou-lhe dizer um grande segredo, meu caro. Não espere o juízo final. Ele realiza-se todos os dias.

Albert Camus

 

          Contaminado pela preguiça da segunda feira Reginaldo levantou devagar e dolorosamente, sua mão direita ainda estava inchada depois da queda de ontem perto do Bar Norte, havia caroço na sua cabeça, além do sono, o gosto na boca: uma mistura de fumo, álcool e uma comida lascívia de boteco, barba crescida, cabelos grudados ao couro cabeludo, mistura de sujeira e sangue.

          O barraco estava sujo, podre de infiltração, com roupas e livros espalhadas por todos os lados, morava nos fundos da casa da mãe.

          Reginaldo nem lembrava mais quando a sua vida desequilibrou, perdeu a esposa, a escola que dava aulas de história, botava todas as perdas na conta da bebida e do gosto por mulher.

          Morar com a mãe foi a sua última opção, velha e inválida, se arrastando sobre uma cadeira de rodas, sua ilustre mãe Maria Vargas, mãe de oito filhos, velha acostumada a cigarros, cerveja e pagode, mesmo depois do AVC, não deixava de fumar nem beber. Reginaldo pagava um aluguel de duzentos reais pelo cômodo dos fundos.

          O emprego que sobrou foi de auxiliar de serviços gerais em um museu, favor de um amigo professor.

          Pegou o ônibus, ao chegar no emprego vestiu o uniforme, trabalhava na área dos dinossauros.

          -Está atrasado, só não te mando embora porque têm um pistolão – disse Gumercindo Leite, supervisor, Reginaldo nem respondia, empurrava o seu material, começava sempre pelos banheiros, depois passava limpando o chão.

          -Então era professor de historia? - quando Reginaldo escutou a pergunta não pensou que o menino estivesse tão perto.

          -O quê? - disse surpreso, as crianças normalmente não falavam com ele, depois de um breve reconhecimento, quatorze ou quinze anos, bem vestido, relógio e tênis caros, um dos granfinos que enchiam o museu, nada demais.

          -Sei tudo sobre você, estive observando, está meio acabado, porém têm um olhar perdido, desses que só as pessoas filosóficas têm, eu mesmo fico assim, o que faz aqui, foi o álcool que acabou com você? – disse o menino, sério, imponente, como Jesus falando aos sábios do templo.

          -Não, estou feliz aqui, na minha vida ser professor é passado, limpo a sessão dos dinossauros – disse Reginaldo.

          -Os dinossauros foram extintos, um dia espero que a espécie humana seja, não importa– disse.

          -Um pessimista, um pouco demais para alguém que começa a vida– disse Reginaldo.

          -Existe uma opção além do pessimismo, gosto de história, venho aqui muitas vezes, me informei sobre você, um professor de história que acabou alcóolatra, sabia que é uma atração turística? O guia sempre fala da sua história, um tipo de crítica ao alcoolismo.

          Reginaldo ficou mudo.

          -Você não sabia, acho que você é uma atração maior que o tiranossauro Rex – o menino abaixou a cabeça e continuou a falar de forma rítmica sem pestanejar – eu odeio museus, minha mãe me obriga. Eles me pediram para deixar os livros de filosofia, argumentam que é “pesado demais”, opinião da minha mãe, já o meu pai acha que serei homossexual, ouvi uma conversa deles na cozinha, meu digníssimo pai mandou minha mãe se preparar para essa “tragédia”. Como é gostar de trabalhar aqui?

          -Não tenho escolha.

          -Tem sim, você pode morrer, Albert Camus disse que a verdeira questão filosófica é o suicídio, aposto que não leu Camus– ele apontou para o grande platô do tiranossauro Rex – se cair dali você morre e que grande morte seria, em um museu! Úú lá,lá. Chic.

          -Li Camus, muita gente acha que se matou, os livros são brilhante, mas a personalidade é pobre, diferente de você, que me parece muito saudável e inteligente - disse Reginaldo.

          -Eu, certamente não sou saudável, tenho asma e inteligente? – disse o menino e fez um gesto de desdem com a mão –sou fraco, quando for inteligente e forte devo optar pela morte, esse mundo não vale a pena, quer saber? Gosto de meninos, o problema que nem eu mesmo consigo enfrentar, entende?

          -Se disser que entendo, estaria mentindo, não fale nesse assunto agora, não está na hora de escolher essas coisas, a vida não é uma só escolha, na maioria das vezes estou tão bêbado que ao ir para cama com alguém que nem sei se é homem ou mulher, nem lembro de nada – brincou Reginaldo e completou.

          -Você é legal, me entende de um jeito diferente...

          Uma mulher apareceu do nada, seca, com ar desconfiado veio até os dois e segurou o menino com força, disse de forma brusca “não fale com estranhos” e levou o intrigante menino para longe de Reginaldo que continuou limpando, que menino estranho, a morte não é opção para ninguém! Camus era um louco.

          Duas da tarde a excursão continuava, Reginaldo estava quase terminando de limpar, tinha que subir e limpar no Platô, único calcanhar de aquiles do seu emprego, vinte metros de escada e uma baita acrofobia.

          O momento tenso, suando frio, melancólico, pensou no que a criança disse, por isso teve medo de subir no Platô, pois havia a certeza que a morte o esperava lá em cima, sentiu um enorme enjôo, náusea que vem da alma, queria partir dali sair correndo, construir uma nova vida, pensou até em acreditar em Deus.

          Subiu devagar as escadas, quando estava a quinze metros teve uma vertigem e quase caiu, segurou novamente na escada e viu se o equipamento de proteção estava ajustado, começou a subir novamente, que horror, sua vida, sua mãe, as coisas que fez, o vício da bebida, a estranha convivência com o sofrimento, nunca amou, nunca foi amado.

          Naquela hora tudo que Reginaldo queria era uma cachaça, da cachaça boa  no bar Norte, bar da Dolores, bebia e não tirava os olhos dos peitos e da bunda da Dolores, um dia melhorava de vida e saía com Dolores.

          Ouviu um grito, quase chegando ao Platô.

          Olhou para baixo.

          O menino caído uma poça de sangue, muitas pessoas aglomeradas, crianças chorando. Uma delas olhou para o platô e viu Reginaldo, então disse.

          -Foi ele, ele empurrou o menino.

JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 17/10/2013
Reeditado em 17/10/2013
Código do texto: T4529567
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