Como o criado deixou de ser mudo

Era um dia normal na vida de Clóvis. Pela manhã acordava cedo de não ouvir o cacarejar das galinhas que, na Bahia eram preguiçosas para isso, tomava seu banho como se aquilo já fosse de um automatismo psíquico tão grande que ele nem lembrara depois se o sabonete estava por terminar, já limpo ele se dirigia a sua simples cozinha e prepara, normalmente, ovos mexidos com pão de ontem, aquela refeição parecia ser a ambrosia de um deus mundano, cidadão normal para uma Salvador de riquezas. Depois de alimentadas as lombrigas de sua meninice ele escovava com zelo os dentes radiantes, de uma brancura de causar inveja aos comerciais dentários, para sua personagem ficar completa faltava o uniforme, era quase um fardamento de guerra, seu peso, pelo menos, era cabível. Era formado por um terno azul-marinho muito bem cortado, alinhado nas laterais, junto a uma calça tão alva quanto seus dentes, pronto, ali estava Clóvis, o criado.

Não gostava de ser chamado de tal, até porque ainda há aquele mero preconceito com o nosso português colonial que alia profissões como criados, com escravidão, mas Clóvis era branco, preguiçoso, cabelos encaracolados, baiano. Sua preguiça não era fato novo, mas o que mudava no rapaz era a atitude. Normalmente pegava o mesmo ônibus vermelho, que usou para decorar sendo o seu devido sua não alfabetização, fato que não parece relevante visto que o rapaz se expressa melhor que parte da burguesia soteropolitana. Sentado em meio a sua viagem de trinta e poucos minutos, já calculava com o alarme de seu celular o tempo do descanso, quem sabe não seria essa a maquiagem que ele usava para seu espetáculo dramático.

A poucos metros do “palco” o celular avisa que a Alameda Oxum está perto, o rapaz sub-repticiamente se posiciona e mudo para não acordar outras personagens só gesticula. Saindo do veículo já se podia perceber a mudança no cenário, as casas perfeitamente alinhadas e pintadas seguindo um matiz agradável a visão, as paredes todas com reboco, os tetos com impermeabilização... Isso é civilização diziam os pedreiros de alguma mansão, Clóvis muito entretido em suas passadas não reparou nas asneiras que estavam a falar, o rapaz odiava lamúrias pela manhã, era indigesto.

Chegando, enfim, ao set de filmagem, Clóvis bate a porta com as mãos aveludadas com medo de despertar as aranhas que na maçaneta cochilavam. A cozinheira, Dulce veio a recebê-lo com um abraço carinhoso e muito zelo, ela era a única pessoa na casa que simpatizava com o criado, que, sempre mudo cumpria seus mandados.

O serviço na residência dos Holanda não era nada pesado, atender telefonemas repetindo o velho: “Residência dos Holanda, em que posso ajudá-lo?”, receber visitas, ciceronear técnicos que faziam reparos na casa ou ouvir confissões adolescentes da dona da casa sem exprimir sua opinião. Como quem brinca de diretor, Deus dera ao criado uma insegurança, um certo queimar nos lábios, um desespero diferente, um agonizante querer falar... Era demais para ele que vivera 40 anos sem exercer papeis determinantes, queria deixar de ser figurante, tinha de falar.

Para completar a cruzada, chega berrando a dona da casa, apressada, avisando que logo vai chegar um parente distante dela, mas que esse deve ser recebido a pão de ló, direito a vinhos, cafés, toda a atenção possível, e num desvario de um agoniado, Clóvis intermeia:

-Dona Holanda, eu precisava falar com a senhora, tem como conversarmos sobre uma situação de minha casa?

-Ah, Clóvis! Hoje não dá, tenho ainda que mandar Dulce arrumar a cama, separar toalhas, mandar recados para algumas amigas, depois conversamos sobre isso, aliás, o que é que te deu, nunca falas?

E assim ela saía em rompante adentrando a cozinha com seu cacarejar sem resposta, e o figurante mandado, permaneceu calado, esperando para falar.

Tentou ainda os filhos do patrão, os meninos, coitados, sempre cheio do que fazer, queriam muito ouvir histórias de gente diferente, mas não tinham tempo.

Ainda agoniado, já roxo de pressão, o criado tenta a amiga Dulce, que muito ocupada responde com rispidez:

-Ô Cróvi, tu acha mermo que eu tenho tempo pra tuas picuinha, é?

E Clóvis a calar-se...

Como quem espera “o bicho pegar fogo”, Deus vai lá e age de novo...

Quando sentado rezando, ainda bufando, Clóvis ouve a campainha tocar, e ele caminha, tentando incorporar sua personagem com afinco, botando seus monstros em seu devido lugar, e abre a porta com a mesma cortesia de sempre. A visita era um senhor mais velho, cabelos claros, olhos claros, definitivamente era parente dos Holanda, e como quem cumpre sua função o criado leva água e café para a visita que, educadamente nega com a cabeça. Passada meia hora o criado tenta um vinho, e a visita aceita, mais tarde uns queijos e a visita foi se sentindo em casa, ligando a TV, e Clóvis a calar-se...

Sempre repondo os quitutes da visita, trazendo sempre o vinho, os queijos, as mascaras da profissão, e esperando um pouco de educação nada recebia... As atitudes do Holanda desconhecido eram ríspidas e aéreas, até que aquela panela de pressão que era o baiano Clóvis resolve explodir, e como uma torrente presa por um fio ele rompe-se em questionamentos a visita, que nada fala.

-O senhor não tem educação não é? Só podia ser dessa familiazinha de esnobes, a patroa perua, os filhos alienados e o pai gastando...

-Aliás, o que o senhor é dessa gente?

E continuava a indagar a visita que passava a vítima de seus atos mal-educados...

Uma hora ele teria que explodir, olhando para a sala podia-se ainda ouvir o monólogo de um criado, tentando criar um diálogo com um surdo-mudo, perto da escrivaninha e do criado-mudo.

Gabriel Amorim 03/09/2013 http://devaneiospalavras.blogspot.com.br/

Gabriel Melo Amorim
Enviado por Gabriel Melo Amorim em 16/10/2013
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