Sorriso Póstumo

Acordo ouvindo a nona sinfonia de Ludwig Van. Abro os olhos em sincronia com a primeira nota, e vejo esvair-se a felicidade sentida enquanto sonhava com tudo que não seria possível para mim. A melodia me embala a levantar, estou de torcicolo, estou nu. Visto-me então com um sorriso para o dia, ele está meio amarelo, pinto-o de branco, e consigo enganar até a mim mesmo, realmente ficou bom.

O café da manhã é acompanhado pela minha preferida do Radiohead, “Nude”. Quebrei o jejum comendo alguns sonhos comprados na padaria do seu Zé e tomei café preto para ajudar a descer. Após terminar saio de casa, e tomo cuidado para que o primeiro passo na rua seja com o pé direito.

No ônibus ajeito meu sorriso e sento-me ao lado de uma mulher, bem bonita por sinal. Ela tinha saído de casa com o sorriso amarelo, isso demanda coragem. Dei um bom dia e com certa timidez ela respondeu baixinho, quase não a ouvi. De certa forma me sinto bem confortável ao lado de tímidos, eles não conseguem pintar o sorriso de branco, e isso me deixa mais solto na hora de conversar.

Na saída do ônibus dou tchau para minha timídazinha e vejo que de certa forma seus dentes perderam um pouco do amarelo ao conversar comigo, hoje à noite teremos uma pseudo-conversa por facebook, acho que podemos chegar a algo.

No elevador do trabalho encontro um colega; seus dentes estão pretos, não pergunto o porquê, mas tento demonstrar que não percebi, e converso sobre alguma fabula que ontem o William Bonner me contou. Ele ouve desatento e concorda com um aceno. É melhor, pessoas com dentes assim são problemáticas.

Chegando ao meu andar sou recebido com abraços por um amigo, não entendo o porquê, mas eis então que sou imediatamente levado à sala do chefe. Consegui ser promovido, e a única coisa em que pensava era no pedaço de felicidade momentânea que poderia comprar com o dinheiro.

O dia vinha sendo ótimo. Conheci uma bela garota tímida no ônibus, fui promovido e até consegui deixar meu sorriso branco sem pinta-lo, após esses acontecimentos. O problema da felicidade exacerbada é que esquecemos as precauções, e comigo não foi diferente. Ao sair do trabalho, pisei na rua com o pé esquerdo, no mesmo instante um homem de horríveis feições me aborda, seu sorriso era uma mistura de vermelho e preto, em suas mãos havia uma arma. Ele mandou-me entregar algo, mas eu não consegui ouvir. Maldita audição, fez com que meu sorriso ficasse amarelo enquanto todos me olhavam. Mesmo agonizando tentei disfarçar, mas por fim deixei-me pensar na garota do ônibus, merda, eu só queria poder embranquecer aquele sorriso mais uma vez.