A hora sagrada
Infância, a melhor parte da vida de qualquer ser humano. A frase tão aclamada pelos saudosistas, moribundos, bêbados e sábios, fazia muito sentido para Alberto, que agora relembrara os momentos tão íntimos e tão maternos, que eram aqueles no ventre.
Banhado de inesgotável líquido, contava sempre com aconchego, carinho, amor, e o trivial, a comida. Sempre fora muito fácil ter comida, assim como acontece com os humanos, acontece com os animais, que, ao iniciarem a vida, já tem comida garantida pelas matriarcas.
A comparação é imediata, enquanto quando pequenos, tem-se os gostos saciados, as vontades feitas e os mimos aflorados, quando adulto, há de se correr atrás de tudo aquilo que se deseja, e o que mais impressionava Alberto era a vontade de comer, o matar da fome, a saciedade. Para ele, que já sofrera com as solitárias da vida, não era fácil ver as crianças rejeitando um prato de feijão, ou alegando não ter o que comer sendo o almoço uma bela salada, era ridículo.
Saindo do âmbito econômico, a vida social de Alberto era uma verdadeira feijoada, tinha aquele gosto maravilhoso na hora, os preparativos eram comprados com antecedência, a animação contagiava vizinhos, mas depois que a festa acabava sobravam os pratos a limpar, o chão a varrer e o infame pedaço de toucinho que não queria digerir, o rapaz aproveitara de tudo na vida, até demais, sabendo do resultado, do estrago, agora, na aurora de seu crepúsculo.
Nascido em berço de madeira simples, dessas que não duram mais do que o tempo necessário para a criança sair engatinhando mundo afora, Alberto sempre viu uma vida sacrificada, filho de pais trabalhadores, morava numa casa em que, todo e qualquer grão de arroz era fruto de muito suor, e motivo de orações mil, quando a vaca literalmente se tornava magra, passavam-se dias sem jantar, almoçar, apenas a esperança alimentava os meninos, a fome de vencer na vida.
A adolescência veio com uma melhora substancial de vida, as refeições se tornaram regulares, o garoto que um dia fora franzino, hoje era homenzarrão de causar inveja aos artistas de Hollywood, com o tempo, o garoto arranjou um emprego de carteiro, ganhava pouco, mas era eficiente, tanto que fora ascendendo mais e mais na empresa, até se tornar o chefe de trânsito, organizando bairro a bairro as escalas de carteiros. O emprego amadureceu o jovem, que decidiu trilhar a estrada da vida, ao lado de uma taxista (nada mais cômodo), a mulher assim como ele jovem, viril, pronta para a vida.
Djanira, a esposa, tinha a mesma concepção de vida que seu marido, via a comida como uma dádiva de Deus, e por isso, nada podia faltar na casa da família Almeida. O casal rememorava com tristeza, o tempo em que pouco tinham o que comer, ou ainda quando tinham o que comer, mas comiam a sós...
O tempo passou, a idade chegou, e junto com ela o desejo latente nos famintos amantes de deixar descendentes nessa Terra de meu Deus, e assim eles tiveram Maria Vitória, menina meiga, magra, até um pouco luxenta demais para seus pais, costumava causar confusões homéricas ao deixar ervilhas no prato, a mesa de jantar passava a ter mais um integrante.
Achando bom demais a brincadeira da vida, o casal decidiu gerar mais indivíduos para sua prole, dando origem a Eduardo, que diferentemente de sua irmã comia o que lhe oferecessem dando orgulho aos pais e alerta aos nutricionistas da vida, sempre enchendo o prato e limpando-o.
A hora mais sagrada não era surpresa ser a hora do jantar, os meninos de pijama contavam as suas peripécias na escola, Djanira contava os causos de uma taxista e Alberto se divertia ouvindo a todos, aquele banquete, aquela saciedade, aquela felicidade, as cadeiras preenchidas, e mais, o coração de Alberto. O tempo urgiu, passou, massacrou os dias, a rotina inalterável dos Almeida havia de um dia se romper... A filha mais velha logo pediu ao pai a permissão de casamento, o filho ficara noivo há pouco tempo, e a mesa da sala ficava cada vez maior para poucas peripécias... Djanira continuava a contar seus causos, mas não havia mais a alegria de um espírito jovem, nem ervilhas no prato...
Alguns dias, Alberto franzia o cenho na hora do jantar, sua mulher, prontamente lançava a teoria:
Almoçou sozinho hoje, amor?
Sim.
A resposta seca, ríspida, era totalmente compreensível, já que, a refeição era o que importava, nem sempre era uma feijoada que enchia, mas um misto quente com a família.
Num dia desses que tudo parece normal, as ruínas desabam sobre o espírito de Alberto, Djanira estava hospitalizada, vítima de um sério acidente de trânsito, que lhe causara concussões, cada segundo passado eram meses de angustia, a fome aumentava, mas ele queria mesmo era uma boa companhia, até que o gélido médico chega a Alberto e lhe anuncia com a presteza robótica de praxe:
Sr Alberto? Sinto informar-lhe mas sua esposa foi vítima de sérias fraturas no crânio, que a levaram...
Alberto não fizera questão de ouvir o resto, estava derrotado, sozinho de novo, perdera o amor de sua vida, e ao mesmo tempo fora contemplado com uma infinita refeição a sós... Era demais, já não custava almoçar em padarias, lanchonetes quando adolescente, mas agora ele estava fadado a comer só, e foi isso que ele fez.
Atacado pela fome vespertina, Alberto ansiava um bom café, poderia ser até uma feijoada acompanhada de um bom papo.
Era tarde demais, enquanto almoçava tranquila com seus 3 filhos, Vitória recebeu um telefonema, era a diarista que não conseguira entrar na casa de seu pai, a porta estava trancada. Correndo, a filha arrombou a porta da desilusão, encontrou Alberto entregue, seu pai entrava de penetra no banquete divino, e como matéria morta, seu destino foi ser banquete de insetos e bactérias.
A filha calmamente sentou-se a mesa e filosofou, o destino de uma mesa de família é a frieza das cadeiras desocupadas e a podridão de restos de comida.
Gabriel Amorim 17/04/2013 http://devaneiospalavras.blogspot.com.br/