Perdeu a hora

Perdeu a hora. Mas já tínhamos perdido o rumo e a paz. E eu já estava na rua, trabalhando.

Já passava das nove e Cecília ainda escovava os dentes. Depois partiu para a roupa, sapatos, adereços... A roupa não combinou! Troca de roupa, possivelmente os sapatos. Trancou a porta. Voltou pra conferir. Segurou o elevador pra se lembrar do que esqueceu... Esqueceu que já eram nove e várias, quase dez. Não quis ser mal educada com dona América do duzentos e seis; caminhou do elevador até seu carro ouvindo as lamentações de um poodle irritante, traduzido pela velha, enquanto era arrastada com os olhos de Cecília. Enfim no carro. A redundância entre o caos e o trânsito lhe fez bater o ponto às dez e vinte... Quase pro almoço.

Teria ela se pintado de ouro ou se cagado? Era o que mostrava os olhares famintos e voltados para Cecília. Sentou-se, acomodou-se e conectou-se. Paulinho, seu vizinho de repartição, a preparou para o pior, em forma de bilhetinho debaixo do teclado:

- “Não espera o homem te buscar! Vai lá!”.

Mensagem decodificada, toma fôlego, concentra-se num olhar tipo, trinta graus sudeste e vai pro abate. Bate, espera, entra, sussurra:

- Com licença. Bom dia Seu Barros. Houve um contratempo e...

- Espera um pouco!

Ao telefone, falou, gesticulou, ouviu e a encarou vez ou outra. Desligou, respirou e indagou:

- Dona Cecília, dessa vez, o que aconteceu?

- Meu rádio relógio se desorientou devido a um “pic” de energia na madrugada.

Ele sorriu. Ainda não tinha ouvida essa nova.

- Tenho que ser sincero, dona Cecília; seu trabalho está atrás da sua vida pessoal. Nossa empresa está em um momento difícil e precisamos otimizar nosso tempo. Temos que libera-la para ir à busca de novos desafios. O departamento pessoal aguarda pela senhora.

Bateu a porta, os pés e os dentes. Saiu da empresa na mesma pressa da entrada. Foi aí que errei no cálculo e na sorte, quando liguei para Ceci:

- Oi amor!

- Não vai acreditar! Aquele raio de rádio relógio! Aquela porcaria! Coisa falsificada! É tudo culpa do relógio! – demorou pra cair a ficha.

- Perdeu a hora?

- E fui demitida! Acredita?

-... Acredito!

Depois da desventura, mês depois, ainda estava estressada. Reclamava, comia, brigava, pirava. Não sabia o que fazer, até que recebi uma proposta de transferência para o litoral. Novos ares, outro local, outro tempo. Relutou bastante, mas se deu por vencida por não se aguentar mais. Nem ela.

Eu estava nas nuvens e ela nem tanto. Saia do trabalho e fincava os pés na areia, e ela sofrendo com o calor, dentro de casa. A areia incomodava, a vizinhança que mal conhecia, o calor, o tédio... Trouxe um monte de coisas da cidade. Fui amansando minha fera, aos poucos, no ritmo da praia. Tinha água de coco, um quiosque agradável, ducha refrescante, brisa do mar... Apresentei-lhe tudo aos poucos. Deu certo.

Onze meses depois, já se tornara uma caiçara. Redecorou a casa, mudou seu estilo de roupas (o meu também, sem consulta), modificou se tempo e aquela cara demoníaca de meses. Estava tão bonita quanto quando a conheci. Praticamente outra. Ganhava bem e os planos nos impulsionavam. Não existiam crianças neles, por pedido dela. Não adiantou.

Enjoos, mais enjoos. Talvez um peixe que caíra mal, água salgada ou coisa assim. Ela manteve as esperanças de uma doença, talvez por falta dos males da cidade e dela. Foi ao médico e, após uma longa e infinita gestação, mais pra ela do que pra mim, vieram eles. Sim, eles: Bianca e Bruno. Aquele olhar sereno e angelical estava pairando no horizonte, como um condenado desesperado. Todo tempo pro ela conquistado já não era seu. Enquanto espalhava charutos e sorrisos, Cecília voltava à sua forma elétrica e descompensada, achando culpa e culpados. Seu cabelo lhe desagradava junto com a falta de paciência e as fraldas sujas. E a praia continuava linda, a areia branquinha, as mulheres bronzeadas. E Cecília, dentro de casa, esquecendo tudo, e o mais importante: não perdeu a mania de perder a hora.