Em meio a bares e emoções
Um bar nada mais é que um lugar de emoções, ou ainda um refúgio contras as mesmas, foi num bar que a sobriedade se perdeu, em meio a doses de Uísque e Vodka importada, a razão também se fora, sobrava a alegria dos bêbados e a melancolia dos garçons.
Reduto dos desempregados o bar é sempre o velho amigo, nunca larga o cliente abastado, sempre tem uma dose da mais pura compreensão que há no mundo para acalantar o choro de um velho rabugento ou de um anjo que de tanto sonhar alto terminou caindo no abismo que se chama alcoolismo. Isso é ótimo para os donos de bar, o que seria deles sem festas inacabáveis, os verdadeiros bacanais modernos, como eles viveriam sem clientes assíduos, ruim é para quem trabalha nesses locais, os pobres garçons, ora xingados ora idolatrados, num mundo em que viver sóbrio é sinônimo de loucura, é melhor viver embrigado e lembrar de que ser louco é apenas um devaneio de Deus.
Renato é um desses, já vivera de tudo nos seus 63 anos de fardo, mal se lembrava da infância que, com ternura ouvia de sua mãe que tudo ia bem, enquanto essa era fustigada pelos homens da vida, e o menino Renatinho calado, só fazia refletir, de tanto que refletira pensou em ser filósofo, mas viu que viver de pensamento ia levá-lo à loucura e à falência. Quando adolescente o menino deu trabalho a sua mãe, arrumou no vício uma desculpa para não viver, começara a usufruir de meios ilícitos pra sobreviver ao mundo que o rodeava, o Renatinho não aguentara a pressão, assim como um navegador conhece suas águas, Renato conhecia seu corpo, viu que não ia aguentar mais um cigarro e por isso continuou, mas um tal de Deus o salvou da morte e pra sua sorte ele está vivo até hoje.
As drogas foram alternativas para o sofrimento de Renato, aos 18 anos viu sua mãe ficar só, e o pior, sem reclamar da vida, Renato cobrava da mãe uma atitude humana, uma revolta, um grito, um dilacerar de coração, mas nada, sua mãe não lhe passara um simples grunhido de reprovação, mesmo vivendo em meio a marmitas e choros de crianças alheias. Aquilo era demais para Renato... Como uma velha panela de pressão que insiste em trabalhar a panela de opressão que era Dona Carmen explodiu agora Renato tinha um mundo desabando e sua missão era reerguê-lo
A partir de sua ressurreição das drogas ele se levantou, com o apoio mais que fundamental de Deus, sua irmã e sabe-se lá de onde mais ele tirava forças, acho que herdara de sua mãe, mestre na arte de suportar e calar. Renato superou a tudo e a todos, arranjou um simples emprego de garçom e com isso sustentava sua casa e com ajuda de parentes distantes e gorjetas sua irmã cresceu, pobre menina, marcada pela insegurança e tão criança para carregar uma cruz insustentável.
Eis que num dia corriqueiro ouve-se a notícia no bairro inteiro, Joaquina, irmã de Renato se acidentara, pobre criança, por Deus foi sempre marcada, Renato corria desesperado, emoções a flor da pele, pensamentos grotescos e depressivos rondavam a cabeça do rapaz, o que seria dele sem seu pilar maior que era o amor fraternal? A menina morria, o choro descia, e Renato se calava, era época de Natal, o sapato que Papai Noel veria esse ano de Renato era preto de revolta ou vermelho escarlate de sangue, era só o que ele sentia e o que queria...
Pensou muitas vezes em desistir da vida, abortou a ideia quando pensou nos olhos marejados de sua mãe, e na alma imaculada de sua irmã, esse é o poder de uma mulher, decisivo na vida de qualquer homem, aliás, como nasceria um homem sem uma mulher? O que seria do choro descontrolado de um filho sem o quente afago de uma mãe?
Renato aos trancos e barrancos sobrevivera, continuara a trabalhar em sua monótona vida, avanços nunca eram feitos, o tempo passava, aniversários eram feitos e Renato tinha somente um desejo e uma certeza, que morreria. Até que a vida lhe prega uma peça digna de romances Shakespearianos. Chegava ao bar uma nova atendente na flor da idade avançada, digna de um homem viril e trabalhador, ou seja, perfeita para Renato, seus olhos cintilavam de um verde felino, sua boca a mais carnuda que um homem mundano já vira, e sua alma só não era mais pura que a de Joaquina.
O amor veio fácil, navegável como as gôndolas de Veneza, sem turbulências a paixão dominava Renato e Alzira, e assim tão rápido como um piscar de pestanas eles se juntaram, as dores de um foram saradas com a insegurança do outro, as mágoas somadas sumiram, e os dois mantinham na Rua dos Bobos um lar feliz, natalino e célebre. Como de praxe fizeram um farto jantar no dia 25, onde comemoram com muita alegria e sentimentalismo a vida, dessa Renato já quis se livrar e hoje reza cada vez mais para Deus lhe manter. Alzira não sabia o que fazer da vida, simplesmente amar o marido ou amá-lo perdidamente, os dias iam se passando até chegarmos no dia de hoje, Renato com 63 e Alzira com 60, todos felizes e sãos trabalhavam naquela caverna de mágoas.
O bar parecia mais cheio do que de costume, as bebidas rolavam ao som de Caetano, as cantadas cada vez mais íntimas davam trabalho ao Querubim que de cima avistara tudo, Alzira de avental branco já estava suada, Renato fazia contas e perdia a conta de quantas doses já servira. Tudo parecia normal, até que uma pomba ciscara na janela, como se Deus avisasse que ali nada mais poderia fazer pela vida de Renato, a pomba não simbolizava esperança, mas alerta, e tão simbolicamente desaparecera a pomba e surgira na camisa frouxa de Renato uma mancha vermelha. Era um tiro, uma bala viera de fora do restaurante e atingira o pulmão consumido de Renato, os jornais disseram que fora uma quadrilha, eu apostava em dívidas de drogas, porém o que importa é o fato, não sua origem. O homem que um dia implorara pela morte, ficou à sorte de Deus, que desolado perdeu um de seus fieis. Alzira ainda com o avental que agora estava ensopado de sangue, de um vermelho vibrante que me lembrava do amor que eles sentiram um pelo outro.
Dessa vez era ele quem deixava um vazio no outro, noutro dia um simples solteirão vivendo vagarosamente, no outro, muito bem-casado comprometido e enlaçado com uma bela senhora. A morte de Renato deixou uma mácula no avental da moça e em seu coração, e assim como Romeu e Julieta, separados eles não poderiam ficar e assim, com a mesma faca suja de limão que deu vida a uma caipirinha, Alzira deixava o mundo do jeito que queria, sendo amada, e Renato o garoto marcado por Deus, que queria morrer, morreu dizendo uma frase final: “Viver é uma dádiva”.
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