Rotina
Acordar com o cacarejar das galinhas, abrir as cortinas com o afago das pombinhas, abrir os olhos para a realidade, isso é rotina, somos sempre tomados por uma força maior que nos faz continuar num mesmo movimento, numa mesma sequência de fatos cotidianos.
A vida de Ofélia seguia sua rotina normal, era irritantemente acordada por uma pomba que muitas vezes pensou em matar, a mesma camisola azul de cetim era vestida para dormir, a mesma cara de alegria era usada no dia a dia. A mulher de cintura fina não tinha o que reclamar da vida. Quando jovem se viu enlaçada, com um senhor 20 anos mais velho que ela, o enlace se tornou casamento e desse foram geradas duas vidas, o que garantiu a Ofélia sua vida pós-cirrose do marido, o barão de cacau falecera, deixando à senhora sozinha e com sua rotina para assumir.
A rotina não foi abalada, só partes dela foram saltadas com tanta sutileza que a mulher mal sentira, não havia mais um corpo quente e bêbado ao se deitar, havia mais uma cadeira vazia na enorme e farta mesa de jantar, a senhora lucrara com a morte, o barão lhe escondia posses de terra no interior e por isso os cacauzeiros ficaram sob a responsabilidade de Ofélia, que agora aprendia a ser o homem da casa, mesmo que seu tom de voz fosse angelical demais para isso.
Amanda e Ítalo pouco sofreram com a morte do pai, o velho sempre fora ocupado demais para criar laços com proles, sempre querendo dominar o mercado de chocolates, e sem nunca pensar em adoçar um pouco a vida de dois miseráveis que até pouco não conheciam o que era ser amado paternalmente, eram quase órfãos, e eram seus filhos.
Como já é sabido, às vezes, uma rotina acaba uma vida, vicia destrói as possibilidades que poderiam ser escolhidas, mas naquela família não era o caso. Era a rotina seca, metódica e robótica que fazia o mecanismo chamado de casa funcionar, Ofélia acordava às 5 da manhã, levava as crianças até a escola às seis e meia e só voltava para casa às 9 da noite, ou seja, não tinha tempo para acompanhar o crescimento emocional das crianças, que agora só tinham um ao outro.
Acordavam com um simples sacolejar do pé pelas mãos grossas de sua mãe, comiam aquilo que suas delicadas mãos e seu diminuto cérebro engenhoso conseguissem pensar, tomavam banho sem se ensaboar já que ninguém lhe ensinara a tomar banho e escovar os dentes não passava de um capricho de artista de TV, eram dois mendigos cheios de amor para dar, e insegurança no coração, cercados por uma selva de dinheiro e ordens.
A rotina sempre intensa não incomodava Ofélia que, ao chegar simplesmente comia, tomava um banho em sua banheira luxuosa e usava seus cremes franceses, enquanto no quarto ao lado, Amanda chorava, lutava contra os medos, medos aqueles que eram controlados pela fortaleza de seu irmão, pelo abraço simples e verdadeiro dele, Ofélia ia dormir cansada, e sintonizada com seu relógio biológico que a alertava da rotina automatizada.
Nada naquele lar tinha ordem, era tudo um verdadeiro caos, não havia general num quartel de loucos intransigentes, a empregada contratada com o mais caro salário chegava a hora que bem quisesse, o motorista usava de seu tempo ocioso para entregar seu amor a empregada ou ouvir seus CD’s de pagode, as crianças cada dia mais feias e descuidadas, e Ofélia, o general, ficava cega pela rotina, não podia se desvirtuar por um simples choramingar de crianças...
Não se sabe bem como os meninos aprenderam a rezar, ainda penso que com a escola, que era muito bem paga, pois esse era o único alicerce que as crianças buscavam e a única fonte de informações de sua vida, achava que era normal não se ter amor de ninguém, só de Deus, Ele era seu pai. Foi assim que as crianças cresceram, aliando inocência e fé, e cada vez mais Jesus ensinava as crianças que, rapidamente aprenderam a ler, e com os trocos de pão compraram para seu consolo uma Bíblia, e nela aprenderam tudo àquilo de mais simples e complexo que puderam extrair.
Ofélia não via o tempo passar, nos momentos em que, infelizmente, ficava em casa, se trancava no quarto ou para dormir, ou para fazer contas, no máximo ela dava uma espiada nas crianças e guardava para si a diferença da altura que os meninos apresentavam da última vez que os vira, pensava que era mera impressão...
A amizade entre os meninos e Deus foi só aumentado, a devoção deles só crescia, e amor incondicional, o sentimento de necessidade também, e a partir daí os meninos passaram noites e noites fazendo pedidos ao Pai, nada de riquezas mundanas ou prazeres, eles queriam ser amados por mais algúem, sentir-se fisicamente amados.
Como num passe de mágica, Deus teve pena das crianças e resolveu ajudá-las, a noite seria diferente, Ofélia chegara mais tarde do que o usual, porém dessa vez ela chegava furiosa, soltando xingamentos a torto e à direita. Na manhã seguinte ela não acordara, mas as crianças sim, e preocupadas com o rompimento da rotina foram ao quarto que, para eles era estranho, novo, e lá encontraram a mãe em prantos, as fazendas de cacau foram invadidas e queimadas por um grupo.
O quarto parecia frio, tenso, uma senhora chorando inconsolavelmente, duas crianças paradas em frente a essa, sem saber o que fazer, magoadas, inocentes, e aí os meninos são tomados por um sentimento chamado amor e em sintonia se aconchegam no colo de sua mãe, que os abraça, tornando aquele momento constrangedor, necessário e fora da rotina, havia na casa sentimento... Ao abrir as janelas se via aquela pomba que acordara Ofélia antes, dessa vez ela estava em seu ninho, alimentando seus filhotes, o que fez Ofélia cair em lágrimas.
Os meses passaram e não deu para a família continuar na casa em que moravam, tiveram de se mudar para um casebre, mas esse local tinha algo que o outro não tinha amor. A rotina agora era outra, Ofélia acordava às 4 da manhã, chamava com um leve beijo as crianças, que iam para a escola, e saía em busca de mais um emprego provisório, mas a rotina agora incluía um jantar simples, o velho feijão com arroz ou um cuscuz com charque, mas em família, onde todos conversavam sobre as dificuldades e juntos rezavam depois da refeição agradecendo mais um dia juntos.
Na escola podia se perceber a simplicidade dos professores novos, os alunos não eram mais mauricinhos e patricinhas, os meninos se enturmavam e agora eram os mais arrumados, pois Ofélia pacientemente ensinara os meninos a serem asseados, e mesmo que com sabão amarelo se lavassem, saíam de casa com o coração feliz e sereno.
A rotina de Ofélia a deixava cansada, mas seu consolo era ver aqueles pequenos grãos de esperança felizes, mas a mudança repentina da fé de Ofélia só veio com um sinal simples. Ao chegar ao apartamento encontrara uma cruz em seu quarto, uma cruz simples e improvisada, feita com galhos de Pau-brasil, e do lado dela a oração da família, que agora representava o bem mais doce de Ofélia que entoava a oração todas as vezes que pensava em desistir da vida, mal sabia ela que a oração fora feita pelas crianças, assim como a cruz.
GABRIEL AMORIM 17/12/2012 http://devaneiospalavras.blogspot.com.br/