Pedra rolou...

Ao longe ainda ecoavam as vozes cantando o ponto de Xangô.

"Pedra rolou, pai Xangô, lá na pedreira, firma seu ponto meu pai na cachoeira..."

Os médiuns estavam todos atônitos, de repente a água cristalina que escorria entre as pedras para depois saltar num jato forte e majestoso, como um véu de noiva, ficara manchada de sangue.

Pedro Paulo Scorcese, quarentão, boa pinta, fala macia, estatura mediana, era o novo amante de Augusta. Ela o conhecera há alguns meses, quando passeava na Saenz Peña. Notara o olhar dele tipo Raios X e gostara. Continuou andando pela praça, atravessou a rua, e de vez em quando, olhava para trás, disfarçando. Ele a seguiu, até que em uma esquina, deu um encontrão em Augusta e desmanchou-se em desculpas. Ela ficou emvergonhada, mas feliz. Afinal, depois de três horas rodando na praça, aparecia um cliente.Foram conversando baixinho até o primeiro motel que encontraram. Foi tudo muito rápido e surpreendente. Augusta contou a Pedro sobre sua recente viuvez, as dívidas, as filhas ainda estudando, as dificuldades. Ele fingiu acreditar, despediram-se. Ela deu-lhe o telefone.

Passaram-se alguns dias e ele voltou a procurá-la. Os encontros se repetiram com muita freqüencia. Tornaram-se amantes. Augusta era muito compreensiva com Pedro Paulo e tudo suportava, a falta de pagamento, o lençol imundo, e outros pequenos detalhes. Apesar da vida que levava, queira iludir-se e e acreditar que o amava. Que ele era seu homem. No fundo sabia que não poderia apresentá-lo as suas três filhas. Moças muito bonitas e inteligentes. Logo iriam "sacar" o tipo de relacionamento que os unia e talvez, descobrissem as roupas que a mãe não vendia, e a verdade sobre suas constantes ausências noturnas.

Tempo passou, Augusta conseguiu colocar a vida finalmente em dia, até recebia a pensão regularmente do falecido. Foi quando soube depois de muita especulação que Pedro Paulo pouco a procurava, pois tinha sido promovido em sua vida de gerente de vendas e tornara-se gerente nacional de vendas de uma importante multinacional italiana.

As vozes ecoavam ao longe, e o corpo rolava cachoeira abaixo. O pai Xangô da Justiça se retirava de cena, os médiuns saiam correndo apavorados com o tiroteio inesperado. Ninguém sabia como aquilo tinha acontecido.

Augusta nunca soube a verdade sobre o desaparecimento de Pedro Paulo, vasculhou durante muito tempo, até que acabou esquecendo. Onze anos se passaram, um dia, mexendo nos guardados da filha Letícia a caçula, encontrou velho recorte de jornal. Curiosa, olhou a foto e reconheceu Pedro Paulo. Encontrou outros recortes e por fim entendeu o que sucedera com o amante. "Assaltante morto a tiros em pleno ritual na cachoeira"...

Sua cabeça ficou embaralhada. Muito mais tarde, quando a filha voltou do banco onde trabalhava, resolveu perguntar diretamente, depois que a neta no inicio da adolescência, saiu da sala. Então, você também conheceu Pedro Paulo? A filha tentou disfarçar a surpresa, e tentou desconversar, mas resolveu contar tudo.

Nos conhecemos em uma tarde que o vi rondando o prédio, achei um homem interessante. Me ajudou muito, me arranjou o emprego que tenho até hoje, me ensinou muitas vezes, dificeis lições de inglês, que eu não suportava e até me amparou quando engravidei da Pamela.Você nesta época era muito ausente e ele foi um super homem para mim. Quando morreu pensei que o mundo tinha se acabado, não fosse a ajuda financeira que ele me proporcionou nos primeiros anos eu e minha filha teríamos passado fome. Mas, porque ele a ajudou tanto você sabe? A filha perguntou admirada: Agora você quer saber? Ele é o verdadeiro pai de Pamela, e até hoje não contei nada para ela, e vou morrer sem contar, ele era inesquecícel, apesar de mafioso.

Augusta subitamente lembrou-se do olhar escuro, e das sobrancelhas cerradas de Pamela e encontrou a resposta para sua dúvida, pois bem no fundo achava o olhar da neta parecido com o de alguém que conhecia. Nada revelou para a filha. Sua surpresa foi tão inesperada e tão chocante que preferiu não lembrar que o tinha amado. O mafioso, o traficante, o assaltante, que jamais lhe pagara pelos serviços que prestara, e ainda por cima, o nojo que teve de sua lembrança a invadiu ao saber que ele a tomara nos braços na mesma época que sua filha o amava também.

Duas semanas depois, Pamela e Letícia, mudaram-se para a Itália, o banco tinha transferido, a filha de Augusta para Milão. Lá os três viviam em "paz". O canto de Xangô era apenas uma lembrança vaga de um momento muito difícil na vida de Pedro Paulo que sobreviveu e no exterior acompanhou os passos de sua famílioa.