Dead Elvis
O cinto branco e dourado, uma réplica do usado pelo Rei no antológico show do Madison Square Garden, arrebentou no último awop-bop-a-loo-mop awop-bam-boom de Tutti Frutti. Meio desesperado, ele tentou transformar o fiasco num movimento sensual: com um gingado de quadril, imitando os strippers que já tinha visto ali mesmo no cassino, fingiu arrancar o cinto. O gesto provocou alguns aplausos de uma mesa de mulheres perto dos 60, que já tinham, claramente, bebido demais. Jogou o cinto para elas, que deram gritinhos entusiasmados. Mas sua performance não enganou os espectadores das mesas da frente, nem Artie, que o observava atrás do palco.
Elvis nunca tinha feito isso.
Poderia ter sido pior, pensou. Poderia ter sido no meio de Love me Tender. Ele poderia estar usando o Black Leather Suit, com o zíper que não fecha mais e fica escondido pelo cinto. E se a calça tivesse rasgado no traseiro?
Artie não gostou, era visível no rosto dele, os lábios meio tortos, quase uma careta. Artie organizava os shows dos cassinos, e já tinha comentado que os jumpsuits estavam ficando apertados demais (até para os padrões do Rei), que a barriga flácida ameaçava escapar por cima do zíper, que as coxas formavam dobras visíveis. Já tinha sugerido mudar o nome do show para Fat Elvis.
Encolhendo a barriga, terminou o show como sempre, I did it my way, umas trinta pessoas na plateia, as mulheres histéricas jogando beijinhos e disputando o cinto-troféu, aplausos minguados das outras mesas. Micho, sentenciou.
Tentou evitar Artie, mas ele o esperava. “Não sabia que íamos virar o Clube das Mulheres”, disse, causticamente. “O show vai mudar de nome para Get it off, Elvis”?
“E essa peruca que não engana ninguém?”, retrucou, internamente, pois todos sabiam que os cabelos louros do amigo eram falsos. Para Artie, só sorriu.
Há dez anos ele fazia Get Elvis. Sabia que o show não ia durar mais muito tempo. Eram cada vez em menor número os que ainda acreditavam que o Rei estava vivo. Foram morrendo.
Como já esperava, duas das sessentonas o esperavam no bar. Olhos brilhantes, roupas brilhantes, canetas brilhantes, pedindo autógrafo no cinto brilhante. Queriam o show completo, queriam embarcar na fantasia do fim de semana doidão em Vegas, sem os maridos, just the babes. Eram bonitas e ele não tinha mesmo nada para fazer. Subiu com elas para o quarto, e terminaram a história que elas repetiriam para as amigas nas reuniões de tupperware, nos clubes do livro, na manicure: uma noite com o Rei.
Elas lhe deram uns US$300 em fichas, “um presentinho”, que ele tentou não encarar como pagamento. Mas, obviamente, era.
No início, ele fez algum sucesso. Os shows ficavam quase lotados, alguns críticos até elogiaram sua “convincente” incorporação do Rei. Mas aparecem dezenas de Elvis todos os meses, mais jovens e mais magros, e outros shows, mais elaborados, com produção melhor. A longevidade de Get Elvis devia-se à amizade de Artie, que lhe garantiu quase exclusividade nos cassinos que administrava. Mas há tempo Artie não investia muito no seu espetáculo: tudo estava velho, caído, decadente; o figurino estava encardido, pedras faltando, botões quebrados, zíperes remendados. A capa dourada (cópia da que parecia dar asas ao Rei no show de 1972, como escreveu um entusiasmado jornalista do New York Times) tinha perdido o brilho. O cenário, “despojado”, segundo Artie, não passava de velharia de cassinos, cujo destino seria o lixão.
Ele sabia que Artie patrocinava outros Elvis, em shows melhores, na cidade, por isso não exigia muito. A persistência de sua carreira de ator em manter-se no chão também contribuiu, por absoluta falta de outra opção, para a continuidade de Get Elvis. Apesar de não querer ficar preso a um papel só (perdia as estribeiras quando o chamavam de “imitador”: ele era ator, tinha a carteirinha do SAG pra mostrar), não teve muito sucesso em suas outras empreitadas. Fez Stanley Kowalski numa montagem de Um Bonde Chamado Desejo, e inovou berrando Stellaaaaaaaaaaa do mesmo jeito que berrava Sylviaaaaaaaaaaaaa quando incorporava o Rei. Infelizmente, Marlon Brando estragou o papel para sempre, e sua interpretação não foi notada. Fez o amigo do casal em Quem tem medo de Virginia Woolf, mas, como nunca entendeu muito bem aquele texto (afinal que filho era aquele, tinha ou não tinha filho?) pareceu apalermado o tempo todo. Um crítico até o elogiou, escrevendo que, com sua interpretação “alheia, fria e distante”, ele traduziu muito bem “a estupefação do outro diante do drama do casal em negação”, mas vinte e seis outros disseram que ele era o pior ator de todos os tempos e que a Lassie teria se saído melhor. Infelizmente, o público concordou com a opinião dos vinte e seis.
Nunca fez televisão, só um comercial de enxaguante bucal, no qual, encarnando o Rei, recomendava o uso de Splash, que faria com que as mulheres pedissem “Kiss me Slowly”. Vergonha, mas pagou a conta de luz (e ganhou quarenta e oito frascos de Splash).
Ele tinha um sonho. Um show que o faria famoso. Um delírio ousado, inovador, chocante.
A primeira vez que a ideia apareceu foi dois ou três anos depois da suposta morte de Elvis, quando assistiu All That Jazz. Ao som de bye bye life, bye bye happiness, hello loneliness, I think I’m gonna die, ele teve a primeira visão de um espetáculo encenando a morte do Rei. Impactante, cru, sem concessões. O cenário: um banheiro; no meio do palco, o Rei sentado no trono, em seus últimos momentos. O título: Dead Elvis. (Originalmente seria “The King is Dead”, mas depois que Game of Thrones apareceu na televisão ele viu que este nome estava acabado.) Ele queria Elvis gordo, inchado, chapado, garrafas e pílulas pelo chão, rosnando I did it my way em meio a lágrimas e baba e vômito, levantando da privada e, mal conseguindo dar um passo, caindo para não levantar mais. Sua ousadia seria ovacionada.
Engordaria como o De Niro quando fez o Jake La Motta (esta era a única parte do projeto ele já estava implementando).
Artie achava que era a ideia mais ridícula que lhe apresentaram em seus quase quarenta anos de carreira (e isso incluía o show que juntou Uri Geller e os Menudos, “Entortando Corações”, cancelado na primeira semana por quase matar três espectadores que usavam marcapasso). Artie definitivamente não o ajudaria com o projeto, e ele não conseguiria quem o produzisse. Também não tinha nenhum dinheiro. Receber “presentinhos” depois de transar com coroas fogosas era eventual, ele não tinha como tornar essa atividade rentável.
Ele precisava de um milagre.
Na tarde seguinte, a caminho de trocar as fichas que ganhou das golden girls no caixa do cassino, parou diante do cartaz de Get Elvis. No lugar da foto tão conhecida (topete, brilho, o famoso macacão Aloha Eagle, do assombroso show no Havaí), viu o Rei gordo, rosto congestionado, suor escorrendo, you´ve lost that loving feeling... Viu o Get mesclar-se em Dead, viu o palco, o corpo caído, ouviu My Way tocando em volume ensurdecedor, seguido pelo silêncio aterrorizante e a escuridão... e, num som de disco arranhado numa vitrola velha, “now it´s gone, gone, gone, gone, gone...”, o “gone” repetindo umas vinte vezes até a cortina fechar. Ficou assustado, excitado, quase aplaudiu seu pensamento, sua fantasia o possuiu freneticamente. Ele precisava fazer Dead Elvis.
Foi um sinal, um presságio, pensou. Não trocou as fichas. Foi jogar.
Perdeu tudo em menos de meia hora. Saiu devastado. O Rei o olhava do cartaz.
Nas semanas seguintes, a única novidade foi um elástico no cinto, que uma funcionária de Artie providenciou. O elástico era patético, um símbolo de derrocada, passaporte para o fundo do poço. Mas com ele conseguia se mexer melhor, e isso era o que importava. The show must go on.
Pensava em Dead Elvis todos os dias, quase conformado com a impossibilidade. Era como um barco ou um carro que nunca teria, como as viagens que jamais faria, como a fama que não chegaria.
Até o dia em que Elvis apareceu.
Estava num café, quando um vendedor de loteria, vestido de Elvis, entrou. It´s now or never, disse o rapaz, oferecendo os bilhetes. O sorteio é hoje. Tomorrow will be too late.
It´s now, disse ao comprar um bilhete. It´s now.
Uma semana depois, tinha um milhão de dólares. E, depois de pagar quinze mil a Artie, devidos há tanto tempo que o amigo achou que era pegadinha, despediu-se de Get Elvis e começou a trabalhar no show da década.
Foi difícil montar o espetáculo. Descobriu que toda a sua concepção era formatada para o cinema, tinha flash backs, cortes e efeitos de edição impossíveis no palco. Não poderia aparecer como Elvis gordo e magro num show ao vivo, a não ser com maquiagem e enchimento; só que a “transformação” exigiria muito tempo, mais de meia-hora, e ele não podia ficar fora de cena muito tempo.
Teve problemas inesperados com os fãs do Rei. Os mais conservadores não reagiram com a excitação que ele esperava. Ele garantiu que seria um tributo, que nada teria de escatológico ou humilhante, que o fato de se passar num banheiro não comprometeria a grandeza do espetáculo. Prometeu que o Rei estaria sentado no trono vestido, lendo, pensando na vida, não haveria qualquer menção a necessidades fisiológicas, só vômito, e apenas como recurso cênico. Mas os representantes dos fãs-clubes mais radicais não aceitaram: teria que cortar o vômito, ou boicotariam o show.
Estava quase concordando com a exigência, não queria oposição dos fãs, quando percebeu que a polêmica traria publicidade gratuita. Que boicotassem, que gritassem! O show ganharia comentários, debates sobre o suposto desrespeito ao Rei, ele seria convidado para falar no rádio e na televisão, quem sabe até na Oprah, haveria panfletagem e tumulto na estreia, cobertura de toda a mídia, flashes, tudo o que ele sempre quis. A revolta dos fãs ortodoxos traria muitos curiosos.
O vômito fica, decidiu.
Outro desafio foi refrear o que Artie chamou de “delírios de prima-dona”. Queria uma privada enorme, um trono de verdade, que ocupasse o centro do palco, sem compromisso de fidelidade à realidade, pois seu show era uma alegoria do excesso, do exagero, da compulsão, que consumiram o Rei no final da sua vida. Contratou especialistas para criar os efeitos que imaginava: o palco estaria totalmente escuro, com centenas de pílulas pelo chão, de todas as cores e tamanhos, com dispositivos de led em cada uma delas, a intensidade da luz aumentando aos poucos. O resultado era deslumbrante, e valia cada centavo gasto. Desistiu, entretanto, da ideia de, no grand finale, mover as pílulas remotamente, formando um cobertor final para o corpo do Rei, que estaria caído no chão. Continuava achando sensacional, insistiu até o último momento, mas afinal concordou que o público poderia começar a rir ao ver as pílulas se mexendo, o que acabaria com a apoteose trágico-triste que pretendia. Foi a parte que mais irritou Artie: “Você quer que Elvis pareça uma árvore de natal derrubada pelo cachorro?”
Os fãs-clubes promoveram um vigoroso estardalhaço, o que, como esperado, fez crescer a curiosidade pelo espetáculo. Oprah não o chamou, mas ele conseguiu boa cobertura da mídia. Todo mundo queria ver Dead Elvis. Os ingressos para a estreia esgotaram no primeiro dia de venda, filas imensas, tudo vendido para os próximos meses.
Nenhum detalhe do show foi revelado previamente, o que suscitou ainda mais interesse. O cartaz, extraordinário, foi feito sobre a celebrada foto do Madison, Elvis com a capa dourada aberta. A foto foi escurecida, com exceção da capa: o resultado era o vulto do Rei e asas douradas, fundo preto, deslumbrante.
Na estreia, êxtase. Na rua, os fãs pareciam duas torcidas rivais. Os oposicionistas carregavam cartazes do tipo “Shame!”, “Respect the King” e “Elvis Lives Forever”, mas a facção favorável estava inspirada: distribuíam panfletos e usavam camisetas com a frase “Always on my mind”, fazendo com que muitos já entrassem no teatro com lágrimas nos olhos.
Inquieto, ele espiava a plateia a cada minuto, acompanhando, excitado, enquanto todos os lugares eram ocupados. Viu Artie na primeira fila, surpreendendo-se com a ausência do amigo nos bastidores para desejar-lhe boa sorte, break a leg, um abraço. Artie estava estranho há algum tempo, às vezes parecia incomodado, até ofendido com o espetáculo. “Ciúmes”, pensou, “inveja porque o zé-ninguém vai ficar famoso”.
Chega a hora.
As cortinas se abrem.
Escuridão e total silêncio. Aos poucos, as pílulas vão aparecendo, milhares, num efeito magnífico, forrando o chão. Surge o trono, dourado (ele não ia desistir disso), imponente, no meio do palco. Ele, o Rei, está caído de bruços no chão, perto de uma poça de gosma esverdeada. Por dois excruciantes minutos, a cena fica congelada, a plateia em sofrimento.
Ouve-se quase um soluço, um rosnado, and now, the end is near... Então o Rei começa a se levantar com dificuldade, escorrega no vômito, and so I face the final curtain... até aí, o único som é a sua voz engasgada, incerta... Entra a música, e My Way segue, ainda trôpega, até a metade, quando ele já solta a voz e mais da metade da audiência está em lágrimas, aplaudindo freneticamente.
Escuro de novo. Na próxima cena, o mesmo banheiro, com o palco ainda limpo e vazio. Uma figura macabra surge, abrindo um imenso frasco e espalhando pílulas pelo chão. Representava George Nickopoulos, o médico que receitava os remédios para Elvis. Seu rosto era uma caveira (uma máscara que lhe custou dez mil dólares, feita por uma famosa maquiadora de Hollywood, que tinha um Oscar para comprovar que valia o que cobrava). Atravessava o palco cinco vezes durante o show, sem uma palavra, a cada vez suprindo o cenário com mais pílulas, preparando o final. Entre uma entrada e outra, as canções, diferentes cenários, o Madison Square Garden, o Havaí, Elvis ao piano cantando Unchained Melody. Na última aparição, enquanto Elvis lia sentado no trono, o médico trazia uma capa e uma foice, a própria Morte.
A Morte fica no palco enquanto Elvis levanta, leva a mão ao peito, My Way volta em volume estrondoso, quase insuportável, e o Rei começa a cair. A música para e, no mesmo instante, o palco escurece totalmente, para o dejà vu da cena inicial, o corpo de bruços no chão, a poça de vômito, “now it´s gone, gone, gone, gone, gone...”, exatamente como imaginou naquela tarde no cassino, o som de uma agulha arranhando um disco, enervante, angustiante, até a cortina fechar.
Depois de alguns segundos de silêncio aterrador, o barulho que ele sempre quis ouvir: a plateia toda em pé, aplausos e gritos. Então este é o som do sucesso, pensou. Então é assim que Elvis se sentia.
Não voltaria ao palco. Concebeu o espetáculo para marcar fundo no espectador a sensação de morte do ídolo, e não pretendia quebrar isso aparecendo para os agradecimentos. Artie achou a ideia infeliz, disse que isso seria sonegar ao público esse momento de interação com o artista bla bla bla, mas ele não recuou: queria que a cena final, na memória de cada um, fosse dead Elvis. Esse era o show.
Espiou a primeira fila e viu Artie, também de pé e aplaudindo, muito sério. A ovação durou muito tempo, muitos “bravos”, até que as pessoas desistissem de esperar por ele e começassem a sair.
Deixou o teatro mais de três horas depois, pois falou com todos os jornalistas e todas as pessoas que o procuraram, celebridades ou não. Quase perdeu a fala quando viu Robert Plant, lembrando que o Led esteve no show do Rei em 74. Plant disse que chorou de emoção. Ele chorou quando ouviu isso.
Sentiu falta de Artie. Ele não veio cumprimentá-lo. Pensou que talvez tivesse vindo e desistido ao ver tanta gente. Sentiu um pouco de culpa em relação ao amigo de tanto tempo, que nunca o deixou na mão, que, mesmo nas piores situações, sempre lhe garantiu um palco. Amanhã telefonaria e jantariam juntos, decidiu.
Não quis festa, foi para casa. No caminho, começou a ver as primeiras críticas no celular. Eram mais que animadoras. “Fantástico”, “arrebatador”, “colossal”. “Elvis morre e um show inesquecível nasce.” “Elvis morreu: aceite, supere e assista a esse show magnífico.”
Lembrou do New York Times, depois do show no Havaí em 73, dizendo que “Elvis superou sua própria lenda”. O mesmo NYT agora perguntava: “Encarar a morte do Rei finalmente superará a lenda? É o que este belíssimo show propõe.”
Quando entrou em casa, Artie estava lá.
Não teve nem tempo de pensar em como ele tinha entrado, ou de falar qualquer coisa, pois uma mistura de surpresa e susto o paralisou. Era a primeira vez que via o amigo sem a peruca loura; sempre achou que Artie fosse calvo, mas tinha cabelo preto, já um pouco grisalho. E estava vestido com um macacão igual ao de Elvis... igual ao American Eagle...
“Seu filho da puta!”, berrou Artie, enfurecido, irreconhecível, avançando para ele. “Seu filho da puta egoísta! Mais de trinta anos mantendo a farsa, a morte que não aconteceu, ‘Elvis está vivo em algum lugar’... Três cirurgias no rosto! Vivendo como empresário de showzinhos de merda como o seu, só para manter a lenda e poder ficar no anonimato, feliz por saber que continuava vivo na lembrança de todos... E aí o babaca mequetrefe, não contente em me imitar vivo, vem encenar a minha morte! Esfregar a minha morte na cara de todos! Gritando pra todo mundo ‘ele morreu, sim, ele morreu MESMO’! Canalha dos infernos! Eu te ajudei toda a sua vida e você quer que todos pensem que eu morri!”
Sentiu a pancada na cabeça e caiu. Calor, escuridão. Gone.
Os jornais do dia seguinte deram destaque ao incêndio na casa e à morte do ator, logo após a elogiada estreia do show Dead Elvis. Informavam que tudo parecia indicar um acidente, “possivelmente uma brincadeira que causou uma pane elétrica geral e o incêndio”, arriscou um dos peritos, observando que achou muito estranho o corpo estar enrolado numa cortina de luzes, daquelas usadas em decoração de natal.