Made in China

Sexta feira, o dia amanhece mais alegre, risonho, brasileiro, parece que já sabemos o fim de semana ansiado, afinal, para que começamos a semana? Meu marido fora trabalhar cedo como de praxe, as crianças ainda com as marcas de seus travesseiros foram à aula e eu com meu mole coração de mãe a pulsar forte pelos apelos emocionais feitos, cedi... ao meu marido, mandei-os para a escola. Levantei cedo, o infernal barulho de cidade grande não me deixa dormir, as construções que não param, as indústrias que só crescem, o dinheiro que só desaparece...

Como sempre me sentei a mesa, e deleitei de um iogurte natural e em meio a colheradas de morango troquei ideias com Marilene, minha secretária e confidente para assuntos levianos, ainda hoje me pergunto como esse ser tem tamanha língua e agilidade para trabalhar em minha casa e cacarejar com outras secretárias “pitando” seus cigarros Marlboro. Ela fala mal dos vizinhos do 601, diz que esses não suportam nossa cadelinha, coitada, tem a vida mais sofrida e mais sem vida de dar inveja aos ermitões missionários.

Antes de terminada a sessão de bate papo saí, me retirei do cozinha, cansada de ouvir “iorgutes” e “mortandelas” e tomada de agonia tamanha que me fazia ficar perdida entre corrigir o erro ou me afogar no pote de iogurte, decidi pela terceira opção, inventar um compromisso(gargalhadas irônicas) se eu o tivesse acho que nem com Deus o seria, mas impus um fim ao tormento linguístico, e pus-me a pensar na minha infância, tempo em que eu falara errado, mas que existiam indelicados suficientes para me corrigir no ato da minha inocente fala.

Eu ainda não cacarejava, era uma vaca, uma ameba, pouco sabia do mundo, que saudade, a nostalgia fez colorido de novo o caderno de minha memória, que antes era colorida de um verde-musgo, mais conhecido como “cor de burro quando foge”. Lembrei-me bem de meus pais, aquela fonte inesgotável de afagos, abraços, beijos e sentir um fraquejar no pulsar de um coração amargo, fútil, atual, lacrimejei.

A distancia imposta pelos meus pais era grande, muitas vezes sentava a beira de sua cama e nada encontrava, apenas as frias cobertas, regadas a perfume francês de um banqueiro disciplinado, ou ainda um balsamo doce que resumia a minha mãe em sinestesias, do pouco que eu tinha, eu tenho saudade. Que pena, pensei em expressar-me sem saudosismos, não deu, fui arrebatada pelos sentimentos meus, presos numa cela solitária, que ao ver o Sol, não aguentou, fechou os olhos, e aos poucos se acomodou.

Como tinha falado muitas vezes procurava amor, e nada encontrava, falavam-me na escola de um tal Papai do Céu, comecei a ser sua mais fiel seguidora, rezava do meu jeitinho, caía no sono as vezes, é verdade, mas sempre no dia seguinte pedia perdão, e nos meus momentos mais íntimos pedia um irmãozinho, pois nunca atuaria dividir meu banheiro com mais uma menina, e nada veio, perdi as esperanças em Papai do Céu, dormia com frio, enfezada demais para me encolher em posição fetal (aquela que Ele teria me ensinado).

Alguns podem me chamar de dramática, mas nego isso, sou humana em primeiro lugar, é triste perceber que meu exílio amoroso seria ensopar de lágrimas um bicho de pelúcia ganho numa promoção da Parmalat, Alfredinho, o elefante, que, ao mesmo tempo, me oferecia seu calor e sua sensibilidade, esse nunca discordava de mim, e sempre me escutava.

Quando penso que nunca sairia desse transe nostálgico, me aparece Marilene, remetendo um recado vindo do interfone, eu teria uma visita do IBGE, mas não agora, a pobre entrevistadora ainda passaria pelo 601, aumentando meu tempo de divagar. Olho o relógio, em poucos minutos se passaram horas, já era hora do almoço e nada de Roberto, muito menos das crianças, fico preocupada, ligo, eles já estão vindo, Roberto me pareceu um pouco mais seco do que o normal, deve ser a bolsa de valores, mais uma vez o capitalismo altera minha rotina, é minha sina.

Vou para o quarto, encaro meus lençóis, encontro a mesma frieza que encontrava na cama de mamãe, o cheiro é diferente, é mais seco, amadeirado, deve ser o perfume de Roberto, anseio pela infância, lacrimejo, e corro para os braços do mais massificado objeto de uma revolução, hoje o que satisfaz, me completa é um felpudo boneco, com a etiqueta desbotada em que ainda se pode ler:”Made in China”

Ah cidade grande, quem dera continuar no tempo das “mortandelas”, fazendo “iorgutes” caseiros, não tendo que conviver com o seco perfume da solidão, e tendo que aliviar carência infantis num reduto capitalista... Alfredinho, onde estás?

Gabriel Amorim 04/06/2013

Gabriel Melo Amorim
Enviado por Gabriel Melo Amorim em 01/10/2013
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