O padre amado

Brasil, Janeiro de 1973.

Era um ano tranquilo, sem muitos abalos para a família de Seu Antônio e dona Magda, criavam seus quatro filhos, tinham sua renda mesmo que mínima fixa e o mais importante, todos tinham saúde.

Magda esperava seu quinto filho na barriga, seu Antônio não perdoava a pobre mulher, aliás, todos que moram no interior são assim, sua família só está completa, sua casa só está cheia, quando em cada quarto dormem pelo menos três. Nesse dia tudo estava muito normal, nenhum alarde por parte do feto, já que esse ainda tinha dois meses de gestação pela frente, as ruas da cidade vazias, seu Antônio com sua velha camisa de manga longa xadrez, desabotoada até o umbigo, até porque estava na hora da sesta, os meninos estavam na escola e dona Magda no varal filosofando sobre a falta d’água... Até que um pequeno ser, que viria a se chamar Antônio Magdo, a junção dos nomes de seus queridos pais, resolveu vir ao mundo.

O mal estar veio subindo pelo corpúsculo da mãe, uma dor que nasce no âmago e morre na alegria, no êxtase de um nascimento. O grito rompeu os ouvidos do pai relaxado, que agora cochilava sobre a cadeira reclinável, seu Antônio correu, e prontamente abotoou a camisa e pegou as chaves do velho Fusca e se dirigiu até a maternidade.

Antônio Magdo já tinha história pra contar, seu nascimento foi feito por dois estudantes de Medicina, que vieram da capital para estagiar no interior, e seu nascimento se procedeu com sete meses de vida... Passados os dois meses de adaptação ao mundo e concluído o desenvolvimento do menino, finalmente o guerreiro Magdo saía do hospital.

É mais do que natural uma mãe ficar feliz com o nascimento de um filho, mas para dona Magda já era o quinto, então não podemos afirmar que sua emoção foi a mesma, mas sim uma reprise de dor da qual ela já experimentara outras vezes, a emoção foi menor ainda para seu Antônio, que sabia que estava diante de mais um gasto em sua vida, uma sexta boca para alimentar.

O crescimento de Magdo se desenvolveu rapidamente, logo ele já estava com oito anos de idade, já usava roupas usadas de seus outros 3 irmãos homens, roupa nova era um sonho que se concretizava uma vez por ano, no Natal, por isso para o garoto era o feriado favorito.

A família Brito não era muito de visitar a Igreja, até que os pais tiveram um compadre morto, e por isso precisaram ir ao enterro. A decisão era arbitrária, deixar todos por conta do mais velho, Hermenegildo Neto (nome herdado do avô materno), mas acontecera que Magdo tinha remédios para tomar e os únicos que sabiam ler estariam no funeral.

Lá se vai Antônio, encontrar o maior impacto que um ser humano pode ter, principalmente aquele ser, caçula da família, nascido de sete meses. Antônio ia a uma celebração religiosa. Pode parecer uma situação estranha, no mínimo mórbida para um garoto conhecer aquilo que deve nortear a fé humana, Jesus. O encontro foi diferente, todos de preto, inclusive Antônio, com a camisa que herdara de Gildinho. Era tudo muito triste, aquela aura de melancolia, todos pareciam que haviam sido jogados no mais profundo umbral da Terra, menos Antônio. Para o garoto era a revelação do sobrenatural, do novo, do alicerce. Ao ouvir o sermão do padre, logo se encantou por Cristo, ficou encantado com a vida Dele e tudo que Ele fizera pelos outros.

Voltaram todos pra casa meio chorosos pela situação, a casa dormiu cedo, até o garoto estava com os olhos marejados, como a ocasião permitia, nada lhe foi perguntado da emoção, até porque não havia como reparar em detalhes como um olho cheio d’água com cinco crianças em casa. Magdo ao deitar molhara o travesseiro, ainda estava emocionado com o discurso do padre, com o confrontamento de uma divindade, pela primeira vez ele se sentiu parte do mundo, do mundo de Deus, ele era irmão de todos que ali estavam.

Brasil, Dezembro de 1990

Os anos passaram rápido demais para Antônio, começou a se interessar pela Bíblia, pedia conselhos à professora de Português que era extremamente católica, pregava sermões sem ouvintes, na hora do jantar, as mesmas “caras de paisagem” na refeição, um velho de barriga protusa, cansado da vida, uma senhora maltratada pela vida da mulher sertaneja, quatro crianças sem esperança de vida, sem horizontes a buscar, e Antônio Magdo.

Fugindo das tradições, o garoto decidiu buscar sua melhora interior, decide abandonar o lar interiorano, rumar seus passos próprios, sair do rastro de seus irmãos... Seria complicado abandonar a estabilidade de sua casa, o afeto mesmo que pouco de seus pais, mas Jesus lhe inspirara algo melhor, lhe abria os olhos para o amor, e por isso ele rumava para um mosteiro, por onde 10 anos aprenderia a viver na religião, na fé, a viver com Deus.

Na época, se precisava bastante de novos aspirantes a padres, o mundo estava carente de pessoas que largavam a ambição monetária, para seguir o caminho da fé, e Antônio era um desses. Assim que chegou, Magdo recebeu suas roupas próprias e com a emoção a flor da pele ele corou, sentiu uma felicidade enorme, pela primeira vez ele faria diferença, ele teria algo só seu.

Os anos passaram mais do que rápido para o novo padre, estávamos no ano dois mil, a modernidade batendo a nossa porta, computadores pregando fé no dinheiro, o mundo se ancorando na carência de amor, não um amor Eros, mas o amor que os gregos chamavam de Ágape, o amor pelo divino, era uma estância totalmente diferente, havia reciprocidade no amar, Antônio amava Deus e Deus com certeza o amava.

Brasil, Janeiro de 2002

Pela primeira vez, o padre Magdo foi chamado para assumir uma Igreja, embora singela, era o outro bem que ele poderia chamar de seu, morava agora sozinho, numa casa com poucas coisas, uma cama, um armário, uma cozinha simples, mas um lar para chamar de seu. Humanos precisam de amor, somos alimentados por esse sentimento contraditório que nos massacra, mas amar Deus era fácil, mas como se sentir completo, preenchido, sem amor?

Os sermões eram feitos diariamente na Igreja, o padre se entregava com muito amor a profissão de fé, realizava vez por outras ações pastorais, nas quais sentia mais ainda o amor divino. Uma coisa que Antônio precisava depois de um ano estafante e recompensador de trabalho, era uma visita de volta a casa.

A viagem foi cansativa, Magdo foi acompanhado de um rapaz que ocupava seu assento e metade do de Magdo, fora os grunhidos que ele soltava a cada lombada ultrapassada. Viajar no ônibus não era coisa de Deus, segundo Magdo, mas como cristão ele tinha mais do que cuidar e perdoar...

Chegando a casa a recepção foi normal, e o normal para a família Brito, católica não praticante, formada por 6 membros, interiorana, era ser frio, uma recepção que não deixava a desejar nenhuma volta posterior... Os irmãos foram consumidos pelo mundo moderno, só pensavam em dinheiro, viam no padre uma fonte inesgotável de dinheiro, até porque, o que se sabia era que Toinho agora ficava com todo o dinheiro dos fiéis, como se isso fosse muito.

Seu Antônio e dona Magda coitados, não sabiam o que era ter um filho voltando, até porque no interior nunca se falava em sair daquela vida de estabilidade e frieza, seu Antônio continuava a ler o jornal, na mesma cadeira, com a mesma camisa xadrez, essa agora rasgada, dona Magda, continuava a estender roupas, sendo que não havia diferenças nas roupas, já que Antônio não tinha roupas próprias, havia agora uma batina nela...

Deitando em sua antiga cama, Magdo começou a filosofar pela primeira vez na vida, deitou a cabeça no travesseiro e parou um pouco, foi pensar numa retrospectiva do que foi sua vida, e sentiu que, em sua essência não havia amor, nunca tinha sido passado amor carnal, calor humano para o garoto, e assim, ele dormiu rezando para ser amado...

O dia iniciou cedo na casa, leite fresco na porta, ovos eram fritos de cinco em cinco, e pães suficientes para alimentar mais do que o dobro da família, a mesma mesa fria, o mesmo silêncio inquietante, até que dona Magda repara algo e se dirige ao filho:

-Tonho, fio meu, que diabo é isso no teu rosto?

-Deve ser o amassado da cama, mainha.

Ignorando o fato o café da manhã continuava, após esse, Antônio foi escovar os dentes, quando finalmente olhou o rosto, e nele havia um pequeno coração em vermelho no lado esquerdo de seu rosto, sem saber o que pensar, ele foi buscar respostas, decidiu rezar, e lembrou-se do seu pedido feito a Deus, Antônio Magdo era amado sim, e assim que constatou isso, fez questão de pregar o sermão em sua casa, e mostrar sua marca como exemplo.

Voltando a vida normal, Antônio recebe um telefonema, ouvia-se do outro lado uma voz triste, rouca e conhecida para o padre, o telefone era de sua mãe:

-Toinho, seu pai faleceu e eu te amo!

Antônio largou o telefone das mãos, e com um impactante som caiu desmaiado, fora abatido por um ataque fulminante, cumprira sua missão na Terra.

Gabriel Amorim 21/02/2013

Gabriel Melo Amorim
Enviado por Gabriel Melo Amorim em 01/10/2013
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