Nos bares da vida
“Se eu quiser falar com Deus tenho que calar a voz...”, era o que se escutava agora num barzinho qualquer, desses que, de segunda a segunda toca MPB, desses que todos já sabem até a ordem das músicas. Era dessa rotina boêmia que vivia Ricardo, e eram estes versos que, de modo vazio e sem sentido saíam de sua boca leviana, ele era mais um cantor da noite, numa cidade de escuridão.
Rio de Janeiro, a cidade maravilhosa, onde num mês de fevereiro qualquer se encontra avenidas coloridas, com moças esculturais em suas fantasias cada vez menores e mais caras, isso só em fevereiro, dezembro e janeiro traz turistas cheios de alegria, máquinas fotográficas, sorrisos no rosto e contas a pagar, isso em Janeiro, mas o que se passava no Rio o ano todo era, a noites cariocas.
Tudo isso agradava muito a Ricardo, ele nunca ficaria desempregado, nem que cantasse para ratos bêbados de garrafas quebradas, ou para garçons e garçonetes com olheiras beira testa, e assim ele ia levando sua vida, cantarolando versos de Gilberto Gil, e nunca concretizando uma só frase de suas músicas, a não serem os versos de Cazuza “meus heróis morreram de overdose...”.
Ricardo era o típico “Bon vivant”, nunca fora um aluno exemplar, passava escorregando pelos conselhos da vida, sua mãe sempre lhe puxando as orelhas, mas nunca com paciência suficiente para lhe dizer que era capaz... Com muito esforço e artimanhas o rapaz saiu, enfim, do Ensino Médio, e dali o que ele mais queria era parar, faculdade se tornara ilusão passageira para Dona Amélia e sacrifício duradouro para o menino, e por isso Ricardo nunca tentara.
Sentindo o frio bater em suas entranhas, a idade tensionar os músculos faciais de sua mãe, as rugas fazerem residência no rosto da mamãe, o dinheiro para a boemia sem fim se esgotar, Ricardo decidiu arranjar um trabalho “manso”, e por isso usou de seu dom para tocar violão e ter uma voz aceitável para bêbados de uma segunda à tarde, para fazer dinheiro.
O começo era só entusiasmo, criara até nome artístico, Ric Carioca, sua mãe, bruta como era vinda de Salgueiro e carregada de seu sotaque carcará, logo contestou: “Mai isso lá é nome de homem? Toma tenência Ricardo!”. Ele não quis mudar, pois achava aquilo “cool” e agora ele já era “maior de idade” e podia mandar em si, mas não sabia Ric, que aquilo não era nada fácil, cuidar de si era tarefa de mães.
Com seis meses de carreira artística, Ricardo conseguiu o primeiro emprego, tocaria todas as sextas e sábados num barzinho na Lapa, e ganharia um dinheiro não muito maior do que sua empregada Joaninha ganhava cuidando de sua casa, e tendo que alimentar seis bocas famintas, mas era o que havia para hoje, e tudo que Ricardo menos queria era trabalho para procurar trabalho.
Os tempos foram passando e a clientela que antes, caberia tranquilamente numa Mini Van, hoje precisaria de um, ou dois ônibus para comportar, e por isso, o dono do bar lhe dera um emprego integral, ou seja, ele tocaria todas as noites, assim ele teve que aprender mais e mais músicas para seu repertório não enjoar o gosto carioca, começou a adentrar décadas mais antigas, todas as tardes ele “tirava” no violão canções de Caetano, Chico, Ana Carolina, Djavan e Jorge Vercilo.
A convivência com sua mãe era a menor possível, de noite, o rapaz não ceava em casa, chegava ao bar às 18h00min e saía só com o último cliente, que variava a bebedeira entre três e 4 horas da manhã, assim só chegava a casa lá pelas 04h30min, 5 horas da madrugada, cheio de sono, mal-humorado, e como sempre, sem tempo para sua mãe. Era essa hora que sua mãe, Dona Amélia, acordava, preparava o café, regava suas camélias, admirava seus cravos e se cortava com suas rosas.
Pela tarde, o garoto começava a acordar, lá pelas três ou 4 horas ele despertava, sempre com aquela cara de desespero, sempre correndo, comia algo rápido, e corria para o seu instrumento de trabalho, seu violão, dedilhar alguns acordes.
O único contato que mãe e filho tinham era às 17h30min, quando seca e rapidamente como sempre, ele beijava aquela testa, cada vez mais enrugada, e assim Dona Amélia permanecia até as 8 da noite, quando abatida pelo cansaço e pelo ostracismo familiar também conhecido como solidão, ela ia se deitar.
A rotina permaneceu até que Dona Amélia aguentasse, até que Deus, Aquele em quem Dona Amélia mais confiava e conversava no dia, teve pena da pobre mãe, e a tirou de sua miséria, da solidão e a levou para seu descanso. Vai ver por obra do destino, esse que é, muitas vezes, usado como uma “desculpa” de Deus para não assinar seus projetos, Ric Carioca cantava “Saudosa Maloca”, música de Adoniram Barbosa, que tinha o toque de tristeza e melancolia que o momento precisava, mas como sempre, Ric não era atingido pela música, ele era muito profissional para isso.
Enfim em casa, depois do estafante dia, Ricardo continuava aquela pedra de gelo, nada sentia de diferente, nem ao menos o fato das tulipas estarem murchas, ou seu suco não estar no congelador como sempre, ele achava tudo aquilo normal, e seguindo a rotina foi se deitar, acordando às 4 da tarde, finalmente sentia algo estranho, não sabia do que se tratava, era algo em seu coração, que poucas vezes entrou em ação...
Nessa tarde não conseguiu aprender música alguma, só queria se livrar do sentimento estranho, e pensando se tratar de uma doença, foi procurar a sabedoria, ou sua mãe, e abrindo a porta do quarto fora abatido com aquilo, que mais parecia Branca de Neve envenenada pela depressão, e sem príncipe para poder acordá-la, foi um choque para Ricardo, o que seria de sua vida mansa sem seu pilar imaginário, sua mãe, seu lastro.
Logo ligou para um amigo, que providenciou tudo junto a ele, caixão, maquiagem, padre, telefone de amigos, e consolo, o que ele mais precisava, já que estava estático, sem saber o que fazer, afinal nunca tinha se virado sozinho. Passou o velório, passou o enterro, e nada de uma reação de Ricardo, perdido na vida, era um pequeno vaga-lume, numa cidade da boemia.
Passavam-se sete dias, a tal missa do sétimo dia chegava, Ricardo vestia seu traje de luto preto e sua máscara de inabalável, para apresentá-la a sociedade. Sentado no primeiro banco, ele parecia sair daquele estado de transe por um momento, Deus tirava de seus ouvidos o tampão da tristeza, e agora tudo que ele ouvia era o sermão do Padre, que inexplicavelmente lhe atingia, passando toda a serenidade e tranquilidade que nunca sentira mesmo com sua mãe ao seu lado.
Voltando para casa, parecia uma criança que aprendeu a rezar, uma experiência muito intensa pra uma criança de 23 anos, foi se deitar com fome, o estômago reclamava, mas sua alma estava saciada, cheia de algo que ele não soubera explicar, achava que era o tal Espírito Santo, e tentou em sua cama rezar, balbuciou algumas palavras de fé, e no fim consolidou tudo com um Amém fervoroso.
Voltando para o trabalho contou toda a história a seu chefe, que, apesar de dono de bar, era um fervoroso religioso, na mesma hora riu do acontecido e deixou o garoto trabalhar em paz, que agora, continuava a cantar nos bares, e seguia a mesma rotina, cantava pela noite, chegava a casa pela madrugada, dormia pela tarde, e a noite cantava o que mudava era aquele beijinho na testa enrugada, era o “bom trabalho” com a voz rouca de cigarro, era o cheiro das rosas pela manhã, era também seu repertório, que agora continha músicas como: “Maria, Maria” de Milton Nascimento, “Beijinho doce” de Zezé de Camargo e Luciano, e a mais emocionante, que conseguia arrancar lágrimas e pigarros tristes de Ric Carioca, os versos do mesmo Adoniram Barbosa que selara a morte de sua mãe, o consolava nos momentos de saudade: “Ai que saudade da Amélia... aquilo sim é que era mulher, às vezes passava fome ao meu lado...”.
Ric aprendera a rezar, e nem por isso largara seu trabalho, aprendeu a acordar cedo e regar as plantas, e o mais importante, aprendeu a viver sozinho e a se cuidar.
Gabriel Amorim 20/01/2013 http://devaneiospalavras.blogspot.com.br/