Sentada no divã
Era uma sexta feira dessas em que tudo estava normal demais, tranquilo demais... Beberrões estavam sentados em botequins jurássicos, turistas desembarcavam no Galeão, ondas quebravam na praia e Amanda estava sentada no seu velho divã. Pelo menos isso não estava normal, aliás, o móvel estava ali por conta de uma mudança que sua irmã fizera, portanto, ninguém ousara deitar ali.
Amanda vinha de um dia tranquilo, rotineiro, a garçonete tivera um dia tranquilo trabalhando na McDonald's, serviu somente 56 mesas, 100 Mc Lanches Feliz e uns 400 refrigerantes, seu cabelo ainda estava molhado do banho que tomara, já que trabalhar num fastfood como esse deixava qualquer cabelo podre, gorduroso. Estava cansada de limpar mesas, receber gorjetas mesquinhas e comer as conhecidas batatas fritas, estava cansada de tudo, da rotina, do trabalho, do marido, dos filhos, de Deus, da vida.
Não é porque se está cansado que se pensa em morrer, Amanda pensava mesmo em mudar, fazer uma revolução em sua vida. Seu marido chegara do trabalho, o mesmo terno azul-marinho, com a gravata cinza, o nó estava torto como sempre, os bolsos pra fora, demonstrando o dia corrido que teve o cabelo desgrenhado dos anos pasados e aperreios acumulados, mas para ela sempre bonito. Amanda nem notou o aproximar de lábios que seu marido fizera, ela parecia gélida, pálida, mas seu marido não percebeu afinal eles estavam casados há mais de 20 anos.
Continuando sua transe mental, Amanda pensou em largar o emprego, construir uma ONG, que dava comida aos pobres, ela faria sopões diários, daria roupas aconchegantes e daria discursos consoladores, parou para pensar um pouco mais e desistiu. Pensar em comida depois de passar o dia num restaurante a fez ficar enojada de si mesma.
De repente, num rompante chega sua empregada, Rogéria, mulata que vivia uma vida tranquila, com alguns percalços, mas em suma, tranquila, até porque sua relação com Dona Amanda era pacífica, uma daquelas que se pode dizer que: “Uma mão lava a outra e as duas batem palmas”.
Rogéria tinha um rosto triste, cara de mulher sofrida, mulher de fibra, lutou pra chegar aonde chegou, tinha os cabelos negros encaracolados, que às vezes, via uma escova em dias de festa, seu rosto foi abrigado pelas rugas que não deixavam mentir sua idade, 65 anos. Dotada de um corpo largo, sofria de Diabetes, e por isso não podia aproveitar dos doces que fazia para os filhos de Dona Amanda. A empregada queria saber o que fazer para o jantar, mas quando viu os olhos da patroa semicerrados preferiu não incomodar e fazer o de sempre, aipim com carne seca.
Amanda de repente entrara em um pensamento bom, pelo menos, para aquele momento era o que ela precisava, pensava estar em uma praia deserta, só ela e seu marido Alberto, tomando Sol, regados à água de côco, espreguiçadeiras e filtro solar. Tudo ia bem, até que as crianças chegaram... Logo jogaram areia para cima, dando uma “agitada” no clima romântico, Amanda gritou, eles pararam como sempre, por pouco tempo... Amanda apagava as férias no Caribe de suas ideias.
O apartamento de Amanda e sua família era bonito, elegante, simples, é o que se pode dizer de um apartamento de luxo, mas não luxuoso, uma beleza clara, clássica, as paredes com seu tom cáqui, adornavam as belas pinturas de Romero Britto, o quarto das crianças era vibrante, o do casal, em tons preto e branco, e a cozinha tipicamente branca, mas recheada dos mais novos eletrodomésticos lançados. O lar dos Amaral era uma beleza, os meninos se sentiam bem, Alberto também, até Amanda já se sentira bem ali, mas hoje não, ela queria mesmo mudar.
Pensou em fazer uma reforma na casa, pintar as paredes de vermelho, os quartos de preto, a cozinha de branco, mas logo mudou de ideia ao pensar nas confusões geradas pelo fanatismo de seu marido pelo Fluminense. Era complicado demais mudar a casa, impossível mudar seu trabalho.
As crianças chegaram com elas a desordem, brinquedos ronronavam, apitos apitavam, cachorro latia, meias voavam, todo o caos instalado, mas Amanda não saía de seu divã espiritual. Para diversificar um pouco, a garçonete pensou em mudar de religião, vai que Deus não a escutasse mais, pensou em ser espírita, mas não se realizou, ao se vislumbrar sendo médium, ou coisa do tipo. Pior foi a experiência mental quando se viu no Candomblé, não seria aceita na sociedade que temos, imagina a mulher de Seu Alberto colocando uma galinha preta numa encruzilhada em plena meia noite do domingo? Não, era difícil demais mudar de religião.
Numa análise menos profunda, pensou que era manipulável demais, e saiu um pouco de sua transe para conversar com Rogéria:
- Rô, me diz aí, tu achas que eu sou manipulável?
-Dona Amanda, pra ser sincera com a senhora, eu nem sei o que é isso de manipulável.
Foi a partir daí que Amanda decidiu que seria mais produtivo voltar ao seu divã. Imaginou um pouco as músicas que gosta, pensou logo no “Ai se eu te pego”, ou na “Fugidinha”, e viu que tinha mais é que mudar de música, era isso que a levava para a depressão, a insatisfação. Música Gospel, música caribenha, música clássica, nada a agradava, até porque, ela não conhecia nada dessas músicas.
Saindo mais uma vez de sua transe foi para a balança, viu que seus 70 quilos era demais para o corpo que tinha, e talvez isso complicasse seu entendimento com o âmago, e aí pensou em mudar de hábitos alimentares, mas aí como comer uma salada trabalhando no McDonald's e morando com duas crianças de seis anos? Impossível, isso resultaria numa mudança de trabalho, que ela já vira que era impossível.
Por fim, Amanda pensou analisar secamente sua vida, marido rico, bonito, duas crianças saudáveis, emprego puxado, casa bonita, o que ela teria que mudar?
Num choque de realidade ela correu exasperada para o quarto, falar com Alberto:
-Amor, precisamos vender o divã.
Gabriel Amorim 24/03/2013