AMIGO.
O último esforço da razão é reconhecer que existe uma infinidade de coisas que a ultrapassam.
Blaise Pascal


               Duas horas da tarde, estava atrasado para a entrevista de emprego. O drama é que tenho que arranjar um outro emprego logo, o meu aluguel estava atrasado dois meses.
               O dinheiro andava curto, naquela época eu estudava filosofia e trabalhava em uma loja de roupas das duas as dez, ganhava comissão, não tinha salário fixo e grana estava curta
               No anuncio estava escrito:
               -Precisa-se de leitor de nível superior, não quero velhos, senhoras solteironas, nem pessoa com voz de ‘taquara rachada’, salário compatível.
               “O que seria, salário compatível?” eu pensei. Além de tudo era no centro da cidade, onde poucas pessoas viviam. Um local de lojas e indústrias.                Quem está no desespero não pode escolher muito, então fui ao local.
O numero 245, a casa da frente estava vazia, no jornal dizia B, fundos, era um beco, toquei a campainha, e uma voz disse:

               -Entre.
               Com as pernas trêmulas dei os primeiros passos em uma escuridão medonha.
               -Ligue a luz, para você fará diferença, eu sou cego – disse a voz firme.
               Fiquei atordoado com o local, a luz iluminou uma sala abarrotada de livros, centenas deles espalhados em montes e outros tantos em estantes pregadas em todas as paredes da sala. Como um rei em seu trono, no meio da sala, um senhor sentado em uma poltrona, distinto, ainda novo, usava um terno, óculos escuro e segurava um livro com a mão direita e a bengala com a esquerda.
               -Vim pelo anúncio – falei – sou o Saulo, telefonei ontem.
               -Sente-se, tem um banco em algum lugar – disse a voz, porém sem fazer nenhum movimento corporal.
               Peguei o banco e coloquei à frente do senhor, como se ele pudesse ver-me, descaradamente ele fumava um cachimbo, coisa que desaprovei.
               -Bem aqui estou – balbuciei, maravilhado pela coleção de livros – o que vou ler, têm muitos livros?
               Ele estendeu o volume ,um livro antigo, capa dura, bem elegante, desses que só encontramos em sebos, nome: A gaia da ciência, autor: Nietzsche.
               -Leia a linha marcada – disse o senhor.
               “Que encontras de mais humano? Poupar a vergonha a alguém”. – li e inspecionei o livro com um cuidado cientifico.
               -Sua voz é boa, venha amanhã, quero que leia a biografia de Pascal, – combinamos o valor e apertamos as mãos, depois sai em direção a faculdade.
               Fiquei calado e impassível, não gostava de Pascal, pensando ao mesmo tempo no dinheiro e na xaropada de ler Pascal, peguei o ônibus e comecei a fazer o meu trabalho sobre “o real em Hegel”, por outro lado tinha o prazer de ler Kant. Exausto e preocupando com meu aluguel.
               No dia seguinte li Pascal, quase fiquei rouco, entediado, ele ficou parado e não falou uma palavra, terminei, ele pegou um dinheiro e me entregou, notei um tremor na sua mão e suava frio.
               Antes de sair eu disse:
               -O senhor está bem? – disse apreensivo e ao mesmo tempo tentando ser simpático.
               -Sim, dentro das circunstancias, você deve estar curioso sobre minha condição, sem ninguém, nem mulher, filhos, não está?– disse o senhor.
               Eu balancei negativamente a cabeça guardei o dinheiro envergonhado e quando ia saindo ele falou.
               -Estou doente, primeiro a doença me deixou cego, estou em uma contagem regressiva, quanto a mulher tive várias, nenhum grande amor, tive uma filha, ela queria ser minha mãe, então brigamos muito, gosto de fumar e beber um vinho, ela queria proibir tudo – ele disse sem mágoas, sem tremor na voz, firme.
               -Desculpe não queria me intrometer – fiz uma pausa e acrescentei para mudar de assunto - Aquela casa é de sua propriedade?
               -Sim, na verdade foi da minha filha, agora é moradia de ratos, pois ela mudou-se com o marido para Inglaterra.
               -Estou procurando um lugar, gostaria de alugar...
               Ele pareceu pensativo, porém após alguns minutos falou de forma pausada.
               -O senhor Gosta de Pascal? Eu sou obcecado por ele, escrevi livros sobre ele, foi uma paixão .Estou inválido, mas a paixão continua, mesmo agora que estou esquecido aqui, tenho a paixão por livros, pelo conhecimento que me alimenta, apesar de não ter sobrado muita coisa do que escrevi e publiquei.
               -Não acha que a vida é assim mesmo? Quero dizer, na vida acadêmica, passamos por ela e depois somos esquecidos, prevalecer é para poucos.
               Ajudei o professor a chegar até a cozinha, ele queria preparar um chá, eu aceitei.
               -Sim, o senhor tem razão, sei que mesmo vidas muito longa, o que não é o meu caso, são curtas e como todo homem eu não sei lidar com o fim, essa doença me matará em dois ou três anos, sozinho, cheio de conhecimento e louco pela juventude, estou triste e só me restam meus livros. É então que o senhor entra.
               Fiquei calado, tomei o chá que ele fez sem ajuda, estava bom.
               -Agora entendi, quer reler livros importantes, não é? – eu disse enquanto tomava chá.
               -Isso me dá um prazer absoluto.
               -Entendo, tem uma coleção admirável. Aceito o emprego.
               -Neste caso, uma coisa pela outra, leia um livro por semana e a casa é sua– disse baixando a cabeça.
               -Obrigado, me livrou de um grande problema – ele levantou a cabeça e sorriu de leve. Naquele momento acho que fiz um amigo, desses que a vida manda para testar o homem, testar o seu caráter.
               Graduei-me em filosofia com mérito e aprendi mais com o professor nos dois anos que passamos lendo e debatendo que todos os cinco anos de filosofia, então eu pude respeitar o pensador Pascal: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”.Sei como foi ter um amigo.
 
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 26/09/2013
Reeditado em 26/09/2013
Código do texto: T4498862
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