PAINHO, LIGA A TV!

Quando abriu a porta do quarto, Rubem encontrou a mulher sentada na beira da cama. Os olhos dela estavam inchados de chorar. Rubem estava bêbado. Depois que saiu da cooperativa de coleta de materiais recicláveis, foi jogar baralho, conversa fora, e beber cachaça com os colegas catadores. O calor era pouco devido ao inverno, 29 graus. Creuza- mulher de Rubem- levantou a cabeça, revelando uma expressão trágica, o rosto lavado de lágrimas.

"Que diacho de choradeira é essa, nega?", perguntou Rubem.

Com um gesto trêmulo da mão direita, Creuza indicou a sala, que divisava com o quarto por uma cortina de chita. Rubem disse "Ôchi!" e seguiu para a salinha, seus chinelos de tira estalavam de encontro ao chão de compensado da meia-água. O dedão do pé sangrava, mas Rubem era indiferente a isso, achava que os pés empoeirados e cheios de cortes lhe emprestavam um ar de machão.

"Ôchi", disse ele de novo. Observou a sala atentamente, esperando encontrar ali um cadáver, ou algo que o valha. Passados alguns segundos, notou a TV... habitualmente estaria ligada. "Ôchi", ele disse de novo, e quando percebeu o motivo da agonia da esposa, tão logo vociferou "então é a tevê que tá bichada!". Rubem colocou e tirou o cabo da tomada, estapeou, soprou por entre as aberturas, tirou o chinelo de tiras do pé e meteu na televisão, mas nem isso adiantou. Rubem sentou no banco- não havia sofá, apenas um banco de madeira com almofadinhas. Do quarto, Creuza choramingava: "Faz alguma coisa, nego, não posso ficar sem a novela, não... Hoje que a Carminha vai dar um tiro no Francisco Cuoco...". Ela assistia as três novelas que passavam à noite e a reprise da tarde. Ele preferia o jornal da noite, a novela das nove, as partidas de futebol e os programas esportivos.

As crianças chegaram da escola e encontraram Rubem, o painho, sentado, olhando a tevê desligada. Eram três, duas meninas e um menino. Foram tardiamente matriculados; quando o governo lançou o Bolsa Família, a mãe achou que poderia ser melhor mandá-los à escola ao invés de manter os filhos vendendo os doces que fazia, ou mesmo pedindo moedas, embora eles faltassem aula esporadicamente para realizar esses serviços, numa espécie de rodízio.

"O que aconteceu?!!" " "PAINHO, LIGA A TV!?" "PORQUE O SINHÔ TÁ TRISTE?!" , exclamaram as crianças, com os olhos arregalados, dando socos no ar.

"Ô Diacho, calma, ôchi, a tevê tá bichada, vão tudo pro quarto da mãe que o pai vai arruma a tevê, nem que o bode cague prego!".

Ao ouvir isso, as crianças foram para o quarto, chorando. Elas adoravam as novelas; sabiam o nome de todos os personagens, de todos os atores, e sempre que passavam em frente a banca de revistas quando iam ou voltavam da aula, detinham-se por vários minutos, lendo as previsões das revistas para os próximos capítulos. Uma vez redigiram uma carta para a rede de televisão- repleta de erros gramaticais grosseiros- pedindo que exibissem as novelas também aos domingos. A mãe colocou a carta no correio. Nunca foram respondidos.

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Anoiteceu. Rubem finalmente fez a tevê funcionar. A tomada é que estava com defeito. Puxou uma extensão e ligou na tomada da cozinha, o que não foi problema nenhum, a geladeira estava estragada há meio ano e era o único eletrodoméstico ali. "Ôchi", ele disse exultante. A mulher e as crianças pararam de chorar assim que notaram que a sala estava iluminada por aquela tão conhecida resplandecência.

A novela das seis já havia começado, mas eles não se importaram, ainda haveriam outras duas. Eles riam, era o fogo se inventando diante deles. Creuza disse que quando os intervalos comerciais chegassem, faria café e até pipoca, pra celebrar, um milagre daquele não acontecia todo dia. As crianças sentaram no chão. Rubem ficou no banco, aproveitando o conforto das almofadas.

Um programa de humor novo estrearia naquela noite. Miguel Fallabela, Claudia Raia e grande elenco.

Foi uma verdadeira festa.

R A Ribeiro
Enviado por R A Ribeiro em 25/09/2013
Reeditado em 26/09/2013
Código do texto: T4497942
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