Um Feliz Natal
- Lourdinha! Ô Lourdinha! Vem cá, criatura de Deus! – gritou lá da sala.
Da cozinha veio a resposta:
- Já tou indo, dona Sofia!
Pouco tempo depois, Lourdinha apareceu na sala, ofegante.
- Oi, dona Sofia, desculpe a demora! Tava de olho na panela de arroz, se não queima.
Dona Sofia, os olhos fixos na grande mesa de centro da sala, nem prestou atenção.
- Ô Lourdinha, minha filha, vá lá no armário do meu quarto e traga umas toalhas de mesa que tem lá, que eu não tô gostando da decoração dessa mesa.
- Tou indo lá, dona Sofia.
Saiu da sala de mansinho, sem chamar atenção, deixando dona Sofia parada na sala, falando sozinha:
- Esse arranjo não ficou bom... Nenhum pouco bom... - Repetia a toda hora, enquanto olhava para o arranjo de flores que ficava no centro da mesa.
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Dona Sofia ainda murmurava alguma coisa quando Lourdinha voltou à sala, nas mãos carregava um monte de toalhas de mesa, a maioria nunca usada.
- Muito bem, minha filha, agora me ajude a arrumar isso aqui.
Começou, então, uma história de arrumar os panos da mesa, mudar as posições das cadeiras e trocar o arranjo de flores de lugar que parecia não ter fim. Foi somente lá pelo meio dia que dona Sofia ficou satisfeita com a decoração.
- Pronto, minha filha, muito obrigado. Agora pode voltar a fazer a comida.
- Tá certo, dona Sofia.
- E, Lourdinha, minha filha, depois que a comida ficar pronta, você passe um pano pela casa, que o chão tá imundo.
- Passo sim, dona Sofia.
- Pois tá certo, Lourdinha. Vá lá.
Saiu da sala de mansinho, ajeitando a parte de cima do vestido com as mãos.
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Passou a tarde toda andando de um lado para o outro da casa. Ora passava o pano, ora fazia algum outro pequeno serviço a pedido de dona Sofia.
Era trabalho demais, parecia que não tinha fim.
Enquanto passava o pano pela casa, os movimentos que fazia com o rodo a lembravam do cavalinho de talo de carnaúba que tinha em casa.
- Lourdinha, minha filha, pode ir tomar banho, que o povo deve tá chegando – disse dona Sofia, lá pelas cinco horas.
Lembrou-se da mãe. O coração apertado, cheio de saudades.
- Tá certo, dona Sofia, tou indo!
Guardou o rodo na despensa e foi se saindo de mansinho na direção do banheiro. As costas doendo.
O coração apertado.
Começou a chegar a saudade da mãe e do cavalo de talo de carnaúba.
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O chuveiro do quarto de empregada era ruim, a água era pouca, caía feito bica. Com uma das mãos ficou se ensaboando, de leve, pensamentos na casa dos pais. Lá, o natal dela era diferente, era bom.
Ela não precisava trabalhar, podia passar o dia todo brincando no terreiro com os primos. À noite, então, era só fartura. Tinha peru, galinha com farofa e bolo de milho pra comer. Podia comer até não agüentar mais e ficar com vontade de vomitar. Mas na cidade o natal era diferente, era ruim. Aqui só tinha trabalho, o dia todo. Era um tal de fazer a comida ali, arrumar a casa acolá.
Era trabalho demais, nunca acabava.
Ainda nem tinha terminado de se enxugar direito, quando escutou três fortes batidas secas na porta do quarto.
- Lourdinha! Ô Lourdinha! Termine logo de tomar esse banho, que o povo já deve estar chegando – gritou dona Sofia, do lado de fora do quarto.
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Os convidados foram chegando aos poucos. Um a um, dona Sofia recebia todos com o mesmo sorriso estampado do rosto.
-
Lourdinha, minha filha, traga um refrigerante e uns salgadinhos que o homem deve tá com fome – dizia ela a cada novo convidado que chegava.
Foi assim durante toda a noite. Os convidados iam chegando e Lourdinha ia lhes servindo. Aqui e acolá alguém notava a sua presença:
- Lourdinha, menina, como tu cresceu! Tá até mais gorda!
Ao escutar os elogios, Lourdinha não falava nada, só sorria, de mansinho, toda envergonhada.
- É, minha filha, tá pensando o quê? Que ela ainda tá naquele fim de mundo que ela morava antes? Essa ai já é quase da família – dizia dona Sofia, toda orgulhosa, a cada elogio que Lourdinha recebia.
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Correram-se as horas.
Perto da meia-noite os convidados se reuniram próximos a mesa da sala para a oração natalina. Quando a oração acabou, dona Sofia, o sorriso de orelha a orelha, realizou um pequeno discurso onde criticava o consumismo das pessoas no natal e exaltava o verdadeiro espírito da comemoração.
Quando o discurso terminou, os convidados correram para mesa e o banquete começou.
Enquanto a comilança corria solta entre os adultos, as crianças corriam feito loucas pela casa. Sem ter quem as vigiassem, algumas delas se juntaram e, comandadas por Zezinho, um dos sobrinhos de dona Sofia, de vez em quando uma delas se aproximava de Lourdinha e lhe dava um bico bem no meio das canelas finas.
- Cambito fino! – gritava a meninada.
Lourdinha urrava de dor, passava a mão pelas canelas, fazia gestos ameaçadores, mas na realidade não podia fazer nada contra elas.
- Cambito fino!
O coração apertado, o bolo subindo pela goela, tinha vontade de chorar. Ah! Como queria estar em casa para ensinar uma lição para essas pestes...
- Cambito fino!
Vez ou outra, quando uma delas era pega em flagrante por uns dos convidados, ela era repreendida:
- Faça isso com a Lourdinha, não, ela é quase da família...
Mas era só ele dar as costas que a molecada recomeçava.
- Cambito fino!
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Pouco a pouco a casa foi se esvaziando após a meia-noite. Quando o último convidado finalmente foi embora, Lourdinha ficou perambulado pela casa, a procura de copos e pratos sujos para lavar. Com muito trabalho, ela conseguiu recolher três pilhas de objetos sujos e pôs-se a lavá-los ainda de madrugada.
Lá pelas três horas da manha, dona Sofia, cara de sono, já de pijama, apareceu na cozinha com um pratinho de comida nas mãos.
- Guardei pra você, minha filha.
- Ou, dona Sofia, não precisava.
Abraçaram-se.
- Feliz natal, minha filha! Que tudo de bom aconteça na sua vida.
- Obrigado, dona Sofia. Pra senhora, também.
- Minha filha, você sabe que já é quase da família. Qualquer problema que você tiver pode nos contar, viu.
- Sei sim, dona Sofia.
Largaram-se. Dona Sofia, já bocejando, olhou para pilha de louça suja e disse:
- Minha filha, deixe de ser besta, termine isso amanha. Vá dormir, vá.
- Não, dona Sofia, eu quero terminar logo hoje, amanha, quero só descansar.
- Você que sabe, minha filha. Boa noite
- Boa noite, dona Sofia.
Ficou sozinha. As costas doendo, as canelas inchadas. Quando terminou de lavar a louça, comeu a comida trazida por dona Sofia e foi para o quarto. Lá, enquanto passava gelo em suas canelas inchadas, lembrou-se com saudade de sua casa e do cavalinho de talo de carnaúba. O coração oprimido, o bolo subindo a goela, pôs-se a chorar.
Fortaleza, 24/12/2009