Conjugal

Seus olhos estão turvos, há algo de dor nesses céus envolvidos com franjas de mel. Os cabelos compridos, castanhos, caem ondulados nos ombros magros. Os dedos longos e esguios, aparentemente frágeis, batem hábeis na maquina. Mal se apercebe dos olhos que lhe perscrutam, está concentrada no labor. Ele não se constrange, continua a olhá-la, todo orgulhoso de si por tê-la, por ela lhe pertencer como mulher. O tintilar do teclado da máquina pequena que ela alojava em seu colo, lembrava o barulho de uma chave tentando penetrar uma fechadura, mas sem sucesso. A casa está mergulhada em silêncio, tudo dorme, o menino dorme, estava cansado do colégio. Apenas eles estão acordados, sem nenhum sono para gastar. Ele continua a olhá-la, mas agora ela o percebe e sorri. Mas não se desconcentra, continua a bater na máquina. Ele chega perto, se senta e toca seus cabelos, sente o macio da seda envolver-lhe os dedos rudes, acostumados a trabalhos mais duros. Ela não se desvia, ele continua a tocá-la, dessa vez a pele, de um branco desmaiado, meio sem cor, mas com muito perfume. Ela não para. Somente quando ele a beija, ela abandona o que a estava prendendo e o toca, o segura no braço.

-Vá ver ele- Diz ela.

-Está dormindo, dorme bem.- Responde.

-Não confio, ele acordou ontem!- Sorriu diante da inocência no olhar dele, que buscava apenas um pouco de sua companhia.- Deixe-me ver com meus olhos, volto logo!

Se levantou, abandonou o objeto de lado, não ele, a máquina. Foi ver o filho, a parte dela que mais amava que mais se parecia com ela. Chegou à porta e viu o escuro, dormia como anjo, suspirando e cheio de candura. Chegou perto, passou a mão pelo pequeno rosto, sentiu o suave contorno das bochechas róseas, sorriu. Voltou à sala, encontro-o concentrado, lendo os papeis que acabara de conceber.

-É assim que você entende o amor?- Perguntou sem vê-la

-Não, é assim que minha personagem entende. - Beijou-lhe os cabelos, agora ela o queria, mas ele estava mais interessado nos papeis.

-Sua personagem é você, pelo menos me pareceu. - Ele se deixou acariciar, mas não queria.

-Não sou eu, não se preocupe!

-Tem certeza?

-Absoluta!

-E ele, dorme!?- Olho-a

-Sim, lindo e doce!

-É nosso!- Falou com orgulho, sentia-se mais dono do que pai.

-Sim, é nosso! – Respondeu com mais orgulho.

-O que vamos fazer?

-Quanto a que?- Ela se esparramou no colo vazio dele, gostava de sentir-se sua, mesmo não sendo de ninguém.

-Quanto a nós!

-Ah, isso!! Não sei, o que acha?

-Acho que devemos pensar, pensar melhor, pensar amiúde.- Prendeu-a ao peito.

-Estamos bem como estamos!- Lhe acariciou os pelos!

-Não gosto, quero assumir meu lugar!

-Já não te basta ser pai e marido?

-Quero ser o homem da casa, ser mais marido e ter outro filho!

-Ora, pois então seja! Não sei se quero você mais marido....Quanto ao filho, quero uma menina, já temos um menino!

-Não gosto de meninas!

-Não gosta de mim?

-Você não é menina, é minha mulher!

-Mas já fui uma menina....

-Sim

-É...

O diálogo tornou-se parco, olharam-se, estava na hora de dormir. Decidiram isso com um beijo. Ele a carregou tímido, como se estivesse a fazê-lo pela primeira vez. Sentiu nos ombros a responsabilidade de tê-la nos braços. Sua mulher, sua amiga, a mãe de seu filho tão querido, a futura mãe de sua filha desejada, a dona do seu lar, a mão que o protegia das coisas que odiava sua inspiração, e fonte de prazeres que desconhecia. Pois então, tinha ele a esperança nos braços, não sabia como carregá-la, mas gostava de senti-la perto do seu peito nu. O menino murmurou do quarto, havia acordado. Ele a colocou no chão.

-Vou vê-lo.- Disse apressada.

-Irei junto!

Chegaram os dois, apressados. Ela carregou o pequeno nos braços, ele olhou para o pai, que o encarava medroso. Os olhinhos tão dela, cheios de gostas de lágrimas mal choradas. As mãozinhas pequenas agarraram os ombros da mãe, estava com medo do escuro.

-O que houve, querido!?

-Medo!- Falou infantil.

-Medo de que?- Perguntou o pai.

-Medo, só medo!- Respondeu sem palavras.

A mãe o apertou, o calorzinho do pequeno corpo a consolava. Ele se aproximou, abraçou os dois. Agora tinha o mundo nos braços. Não precisava de mais nada, só deles.

-Vou amamentá-lo, talvez seja fome.

-Sim!

Sentou-se, colocou o pequeno no colo e tirou o seio, ofertando-o a pequena boca. O pai parou, era linda aquela cena. Sorriu, chegou perto e olhou os olhinhos azuis se fecharem devagar. Os cachinhos meio lisos na testa cheia de suor, os pés pequeninos encolhidos no colo espaçoso. A boca que sugava esfomeada o seio oferecido com amor. Havia amor naquele momento, o quarto era todo amor.

-Dormiu!- Disse ela.

-Sim...-Ele ainda os olhava, estava bobo.

-Vou colocá-lo na cama, talvez não acorde mais!

-Sim...-

-Me ajuda!?

-Claro!- Tomou o menino que agora dormia profundo, a boquinha ainda formava o bico, como se ainda tivesse o seio entre os lábios. Não suava mais, mas as lágrimas ainda rodeavam os cílios negros. Ela ajeitou o peito na roupa, ele aconchegou o menino nas cobertas. Chegaram perto do leito, olharam pela última vez sua pequena obra prima e saíram.

-Durmamos aqui!- Apontou a sala.

-Aqui? – Disse ela surpresa.

-Aqui, caso ele acorde...

-Mas levantaremos cansados, com dor nas costas.

-Então não durmamos!

- E o que faremos?

-Que tal....- Pensou, alisou o queixo. – Vamos por em prática nossos planos!

-Aqui?

-Aqui...

- E se ele acorda?

-Vamos vê-lo...

- E se ele vem?

-As pernas são curtas, não desce do berço...

-Mas...

-Mas....?

-Não sei..

-Não precisa saber, eu ensino.

- Não é sobre isso, isso eu sei....Você me ensinou antes..

-E sobre o que é?

- Como ela será?

-Talvez se pareça com você...- Ele pensou, o pequeno já se parecia.

-Ou com você...

-Sim...Ou com ele!

-Mas ele se parece conosco, oras!!

-Sim, assim facilita, ela será como ele, mas se ele é como nós, ela também será meio a gente!

-É- As pálpebras começavam a pesar, cansadas.

-Sono?

-Sim, muito trabalho!

-Eu também..

-Muito trabalho?

-Não, sono!

Nisso ficaram, estavam na sala, esparramados no chão, enrolados em seus próprios braços, sem se tocar.

- Como vai se chamar?

-Não sei...

- Maria?

-Gosto de Maria, é bonito!

-Só Maria?

-Não...pensei em Clara.

-Luíza, mais bonito..

-Sim...

-Não combina com ele, nem me lembro como decidimos o nome dele!

-Não decidimos, você decidiu.

-Sim...me lembro...

- E se for outro menino?

-Não será, eu sinto...

-Sente?- Ele hesitou, sentir para ele era como existir.

-Sinto...

-Como sente?

- Só sinto, algum problema em sentir?

-Não, nenhum problema...- Olhou o teto, também sentia, mas não sabia o que.

- Será linda...

-Sim, como ele!

- Como ele, como nós...Como ela mesma.

- E se você já estiver?

-Não estou...

-Como sabe?

-Sinto, eu sinto!

-Sente?

-Sinto e sei!

-Sente ou sabe?

-Os dois...

- Eu também sinto!

-Sente o que?

-Não sei, só sinto.

-Como assim? A gente sabe o que sente...

- Eu não sei...

- Vai entender.

-É, vai entender...

Olharam calados para o teto, passaram um tempo sem nada dizer, até que a necessidade de quebrar o silêncio os veio importunar.

- Como será?

- O que?

- Não sei se estou pronto...

-Disse o mesmo antes...

-Mas antes era antes, agora é diferente...

-Por quê?

-Não sei, só sei que é...

-Está com medo?

-Mas do que antes...

-Então esqueçamos, faremos outra coisa..

-Não, quero fazer isso...

-Tem certeza?

-Tenho....o medo passou, você está aqui...

-Parece ele falando....

-Sou um pouco ele, tenho medo de te perder, assim como ele...

-Tem?

-Tenho, principalmente quando escreve....

-Não gosta que eu escreva?

-Não gosto que me troque pela máquina, só isso!!

-Não te troco por ela...

-Troca, às vezes acho que você a ama mais...

-Eu te amo!- Ficaram em silêncio.

-Ama?

-Amo...

-Ama como?

-Do jeito que se ama..

-E como se ama?

-Como se ama, simples..

-Não sei como é isso...

-Então não ama?

-Amo, amo do fundo da alma até o fundo do corpo...

-Isso é amar demais...

-É assim que amo...

-Me ama?

-Amo você inteira, do seu cabelo a seu jeito de arrumar os cabelos....Já te disse que amo seus cabelos?

-Já...Gosta de tocar neles...

-São macios...

-São seus, pode tocá-los....- Ela chegou a cabeça para perto dele.

-São lindos...

-São seus...

-Sim, são meus...

-Gosto de alisar seus pelos- Ruborizou, não sabia bem porque.

-Alise, gosto de sentir seus dedos....

-Gosta?

-Gosto...

-Meus dedos são longos...-Olhou para as mãos.

-São longos...

-São...

-Suas mãos são lindas...

-Não acho...

-Mas são...

- As suas também...

-São rudes...

-São lindas e grandes...

-São grandes?

-São, gosto delas grandes...

-Sim...- As mãos estavam unidas, as longas dela e as grandes dele. O tapete os aconchegava, ela tinha as pernas dentro das dele, a cabeça toda em seu peito.

-Tem pernas lindas...

-Não acho, são muito compridas...

-São lindas...

-As suas também...

Ficaram sem ter o que dizer, a madrugada com seus sons já os embebedava. O sono chegava lento, queriam dormir, mas o calor dos corpos unidos não os permitia.

- Será que ele dorme?

-Não chorou...

-Então dorme...

-Sim, parece que dorme...

-Estava com fome...

-Estava com medo e com fome...

-Será que ela terá medo do escuro..?

-Talvez, se ele tem.....

-É...

Ouviram um murmuro, o pequeno acordara outra vez, dessa vez gritava a mãe, parecia sofrer.

-Acordou...- Levantaram, foram ao quarto e o encontraram em pé, com os braços estendidos.

-Mamãe, mamãe...-Gritava assustado.

-Estou aqui, filho!- Estendeu os braços a segurá-lo, o pai que estava logo atrás, segurou-o também, colocou a mão em sua pequena cabeça.

-Vamos levá-lo para sala, para ele sonhar conosco..- Disse.

-Vamos...

Foram os três para sala, se deitaram no tapete. Colocaram o pequeno entre eles, se deitaram de frente um para o outro. Agarraram o pequeno corpo e o envolveram com um só braço. Fecharam os olhos e dormiram. Sonharam...

Carol S Antunes
Enviado por Carol S Antunes em 13/09/2013
Código do texto: T4480786
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