"MAMÃEZINHA QUERIDA"
Ela era conhecida por Dona Tuta, apelido um tanto, aparentemente injustificado, pois não tinha nenhuma relação com seu nome, já que chama-se Antonia, mas a antiga profissão que lhe rendera a grande fortuna que possuía e que a idade se incumbira de promover a cafetina, essa sim, com certeza.
Começou a ser assim tratada depois que descobriram seu passado, em principio somente pela rapaziada do local, mas logo por toda vizinhança. Ela pouco se importava, e talvez nem desconfiasse o motivo.
Dona Tuta era alegre e generosa, e seu apelido que no início tinha uma conotação jocosa, acabou tomando uma forma carinhosa, pois era muito querida e até respeitada. Beirava os setenta, mas gozava de boa saúde.
Como parentes, só lhe restara uma filha, cujo pai nem ela mesma sabia quem era ou fora, pois aquela altura da vida já poderia estar enterrado em qualquer cemitério em algum lugar do mundo, já que ela dedicara grande parte de sua vida trabalhando nos bares noturnos do porto.
Havia sido mulher de rara beleza, e claro, cobrava caro por seus “serviços”.
Não esbanjava dinheiro, pensava em uma velhice confortável o que, sem dúvida conseguira. Possuía vários imóveis uma conta bancária que engordara ainda mais, quando passou agenciar as “meninas” em seus encontros secretos com políticos respeitados da época em sua cobertura a beira mar que era usada somente para isso.
Ela, entretanto, preferira viver naquele subúrbio tranqüilo, mas bem localizado em sua enorme e bela casa onde cultivava suas rosas e contava com o carinho de seus cães, pois nunca tivera um homem por quem se apaixonasse de verdade, sua antiga profissão não lhe permitira conhecer o amor como qualquer outra mulher. Usava os homens da mesma maneira que era usada e isso endurecera seu coração.
Marisa, sua filha, estudara em bons colégios, era formada em sociologia e casada com um médico. Pouco a visitava, mas demonstrava ser boa filha e preocupada com seu bem estar, embora não aceitasse de bom gosto seu passado.
- Puxa, pensei que você havia esquecido que tem uma mãe há dois dias que não me telefona. – dizia ela à filha quando daquela sua visita acompanhada do marido.
- Bobagem D. Antonia - replicava o genro, atenciosamente – a senhora sabe que a queremos bem e até nos preocupamos por preferir viver aqui e sozinha, pois se algo lhe acontece não estamos por perto para socorrê-la.
- Não se preocupe Marcelo, sou forte e decidida e meus cães latem até para moscas e mordem até a sombra.
Aquela noite o casal se viu obrigado a permanecer em sua casa. Desabara um temporal daqueles e o genro decidiu que pernoitariam ali.
Durante o jantar, entretanto, faltou energia e toda área circundante se viu ás escuras por alguns minutos, pois a luz não demorou a voltar.
A senhora,depois da refeição e do suco de frutas queixando-se de leve sonolência pediu desculpas a filha, pois queria recolher-se beijou o casal e retirou-se para seu quarto a dormir. Aquela que seria sua última noite?
Na manhã seguinte Neusa, sua empregada, que já colocara a mesa do café estranhara a patroa não estar de pé e resolveu subir ao seu quarto para despertá-la:
- Dona Tuta, dona Tuta – chamou ela aproximando-se da patroa, e como esta não respondesse colocou a mão em sua testa e percebeu que estava fria. Morta?
Bateu aflita à porta do quarto que o casal ocupava:
- Marisa! Marisa! – chamava ela desesperada. E quando a filha a abriu exclamou em prantos:
- Sua mão morreu, sua mãe morreu!
Os três correram ao quarto e Marcelo pode constatar que realmente a sogra havia falecido, entrou em contato com a polícia e prontamente se dispôs a atestar o óbito causado, segundo ele, por uma parada cardíaca.
Diante de tal constatação, os policiais nem exigiram que o corpo fosse levado ao necrotério e aceitaram sua afirmativa.
A notícia da morte logo se espalhou e deixou todos do local consternados e surpresos.
D. Tuta sempre deixara claro à filha que não queria ser velada em capela de cemitério, queria que seu corpo saísse de sua casa. Assim como o féretro foi marcado para o dia seguinte, o velório aconteceu em sua enorme sala, com a vizinhança toda presente e a filha inconsolável atirando-se vez por outra sobre o caixão da mãe e soluçando aos prantos exclamava:
- Mamãezinha querida, por que você me deixou? Oh! Meu Deus, por que a levastes?
Como sempre acontecia no nos velórios caseiros de antigamente, esse também acabou virando boca livre dado a quantidade de salgadinhos que era servido, e apesar dos constantes lamentos da filha, poucos estavam se importando com o falecimento da pobre senhora e até comentavam maldosamente bem perto do esquife:
- A velha cafetina se foi, e vai deixar uma boa grana para a filha. Ganhou muito dinheiro com a periquita dela e das outras.
Por volta da meia noite, quando mais gente chegava, o caixão já era ignorado e o falatório tão grande e só interrompido pelos gritos de “mamãezinha querida” de Marisa, foi aí que Manézinho, o menino que ajudava D. Tuta na jardinagem, de olhos arregalados, cutucando a mãe:
- Mãe! D. tuta levantou o pé, eu vi!
- O que menino, tá maluco? Mortos não se mexem.
- Eu juro, mãe ela levantou o pé – repetiu o garoto em voz ainda mais alta.
Todos se voltaram para a mesa onde estava o caixão depositado e para surpresa geral Dona Tuta levantou-se, e sentada no ataúde balançando a cabeça como que bêbada olhando todos à sua volta sem entender ainda o que se passava, mas tendo ouvido algo sobre seu passado falou com voz enrolada, quando se deu conta de onde estava:
- O que é isso, estão querendo me enterrar seus filhos da puta? Que merda é essa de me colocarem num caixão? Cafetina é a puta que os pariu.
A correria foi geral, todos queriam sair pela porta ao mesmo tempo e alguns até saltaram pela janela.
Marisa, agora abraçada a mãe repetia feliz:
- Mamãezinha querida! Você está viva, viva! Graças a Deus.
Na manhã seguinte, no carro, quando o casal voltava à casa ela repreendia o marido:
- Que merda de médico é você que não sabe a dosagem certa de um remédio que a fizesse dormir dois dias como disse que o faria, para que pudéssemos enterrar aquela puta velha viva ou morta, e mesmo aproveitando a falta de luz não conseguiu apagá-la para que ficássemos de vez com toda sua fortuna.