A outra metade

Morrer é só planar por sobre as árvores. Eu morri – morri na minha última vida. Não me lembro do que fui na última vida, mas lembro de que morri. Também não lembro exatamente de como morri, mas sei que foi um golpe – um golpe de alicate. Dois homens me golpearam – um velho e um jovem. Pai e filho. Eu estava no banco de trás de um carro vermelho, eles estavam na frente – o pai e o filho. Eu sabia que iria morrer. Então, morri. E voei. E fiquei planando pela estrada, de vestido azul – mas acho que não gostava de azul na minha última vida. Depois, fui subindo, e fiquei planando ali – para além da copa das árvores. Dez anos. Planei por sobre as árvores por dez anos – o intervalo entre a minha última vida e a minha vida de agora.

Nessa vida de agora, conheci a Daniela. É bonita a Daniela. Apesar de bonita ser um adjetivo bobo demais para qualificá-la. Conheci-a no metrô, num dos meus melhores momentos de fotógrafa à procura de modelos. Explico. Sentada no metrô – ou em ônibus – costumo reparar nos desenhos das outras pessoas. Reparo em suas tatuagens, que raramente me agradam. Reparo nas cores dos seus sapatos e dos seus celulares. No fundo, acho que sou uma pessoa bastante imagética – no fundo não, na borda. Eu escorro imagens, como disse Daniela um mês depois de nos conhecermos no metrô. Nesse dia ela vestia um vestido floral esvoaçante de verão, uma coisa meio amarela com flores vermelhas, e uma sandália de tiras coloridas, uma verde, uma roxa, uma vermelha, uma verde, uma roxa, uma vermelha. Não imagino esta como uma boa combinação de cores, mas combinava ali. Combinava em Daniela. O verde, o roxo e o vermelho, em tons mais escuros do que os de aquarela. Bonita a sandália da Daniela.

Nesse dia no metrô eu estava decidida a observar as pessoas. Fechar o livro e observar as pessoas. Então parei o olhar na moça bastante bonita de vestido floral e sandália colorida. Fiquei imaginando o nome dela, se estava indo pra faculdade e qual curso fazia. Se estava indo para o trabalho e com o quê trabalhava. Tentei imaginar o tom da voz da moça, torcendo para ser um pouco mais grave do que o comum em vozes femininas. Gosto bastante de mulheres de tom grave. Procurei, para dar fim à observação, seus desenhos. Uma lua em preto e branco. Preto da tinta, branco da pele dela. Mas coloria tudo, no fim.

Minha cabeça doeu nesse dia – não estava muito acostumada a observar assim, tão de perto, uma desconhecida. As vozes ao redor também atrapalharam a observação, causando essa dor. Isso porque observar pessoas é, para mim, como ler livros. Gosto de ler no silêncio. Qualquer silêncio. Em bibliotecas, praça, qualquer canto sem música. Os ruídos das conversas no metrô fizeram minha cabeça doer – além de atrapalhar a leitura que eu fazia de Daniela. Do exterior de Daniela. Da imagem dela. Fechei os olhos e guardei essa leitura para outro dia, pois eu sabia que haveria outro dia.

Chato narrar os fatos assim, cronologicamente, eu sei, mas o segundo dia em que conheci Daniela resolve tudo. Resolve porque pegamos o metrô na mesma estação, e sentamos-nos uma ao lado da outra. Daniela, ao sentar-se, abriu um livro. A insustentável leveza do ser. Engraçado como ela me lembra, agora, Teresa – a do romance. Explico isso também. A Teresa é aquela da tensão entre o Corpo e a Alma. Aquela que passa toda a história fazendo com que a alma transborde o corpo, suba à superfície, encontre o que há no mundo fora do fundo do ser.

Sentei-me ao lado da moça, portanto. Naquele segundo dia ela vestia uma saia jeans bem curta – chamando a atenção para suas pernas brancas – uma camisa cinza com o desenho de um personagem animado qualquer, e um tênis amarelo. Gostei da combinação dessas cores. E, sentada ao lado de Daniela, percebendo que ela custava muito em se concentrar no livro aberto em suas mãos, disse que há uma semana tinha terminado a leitura daquele mesmo romance e perguntei-lhe o que estava achando da história. Ela sorriu e respondeu que o romance incomodava bastante porque queria imitar uma história que, em pensamentos, há meses ela esboçava. A história do livro era quase que idêntica à história que crescia e tomava forma dentro da sua cabeça. Duas mulheres, um homem, danças, marchas. Leveza. Peso. Vida. Disse que era bastante estranha a sensação que ela descrevia porque, também não sei o motivo, senti a mesma coisa durante toda a leitura daquele romance. Senti que ele imitava uma história que minha mente criava há meses. Uma história com duas mulheres, um homem, danças, marchas. Corpo. Alma. Vida.

Tornamos-nos, assim, amigas – em toda extensão que essa palavra pode ocupar.

Daniela é, enfim, nessa minha vida de agora, a tensão entre um Corpo certo, tangível, colorido, e uma Alma incerta, volátil, cinza. Daniela é o lugar no mundo onde tento marcar esse corpo e essa alma – sem me importar muito para o que significa ter uma alma num corpo, ou um corpo numa alma. Mas, além de tudo, ela é a parte do mundo em que tento encontrar o que é ser mulher, o belo e o feio em ser mulher. Como a Teresa do livro, aquela que sonha com mulheres nuas caminhando ao redor de uma piscina – e caindo dentro da piscina, depois de levar um tiro que sai da arma do único homem que parece ter um pouco de importância num mundo de mulheres.

Daniela me faz procurar o sentido que existe em ser mais uma mulher que cai na piscina. Porque somos duas mulheres caindo numa piscina nessa vida de agora. Na minha última vida também fui mulher. Acho que nas minhas últimas vinte e nove vidas fui mulher. E morri como mulheres costumam morrer – de vestido azul. Ontem sonhei com essa última morte e, no sonho, alguém disse que a Daniela, nessa vida de agora, morrerá como eu morri na minha última vida. As árvores me disseram – e eu preciso avisá-la. Preciso avisar Daniela de que ela morrerá. Depois planará por dez anos. De vestido azul.

"Mas ninguém encontrará jamais a outra metade de si próprio" - Milan Kundera

Luana B Vieira
Enviado por Luana B Vieira em 12/09/2013
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