Um Doente Estranho
Há quem fale em muitas vidas passadas para justificar a que Gueron tem para viver. O gosto pelo requinte, remete, na estreita visão do vidente que o assistia, para uma vida de Príncipe e a crueldade para a cruenta justiça da época. No caráter avultam a vontade de vencer atropelando o que fosse preciso e um paradoxal amor pelos simples, únicos a quem dava, de olhos e espírito fechados, razão. Estas conclusões decorriam de estranhas sessões em que Gueron era convidado a referir factos importantes ocorridos quando ainda nem tinha idade para saber ler. Diga-nos o que, de principal, ocorreu em 1961, perguntavam. E Gueron repetia uma e outra vez, coisas como: Adolf Eichmann foi considerado culpado contra o povo judeu por um tribunal de Israel; O arquiteto Pardal Monteiro desenhou a Cidade Universitária de Lisboa; Yuri Gagarine foi o primeiro homem a ir ao espaço; iniciam-se os trabalhos do Concílio Vaticano II; Herberto Hélder escreveu “ A colher na boca”; O Benfica conquistou, em Berna, a Taça dos Clubes Campeões Europeus; Morreram Lumumba e Villaret, Jung e Ernest Hemingway, entre outros. Os médicos e o vidente confirmavam os factos referidos na Enciclopédia e baralhavam-se nas decisões. Era, na verdade, um caso estranho.
Conheci Gueron Malaguerra no Hospital onde ambos nos tratávamos a maleitas do foro psiquiátrico. Ele de esquizofrenia e eu de depressão grave a fazer fé nos registos que, juntos, devassámos enquanto os enfermeiros conviviam na sala de estar. Ficámos amigos. Trocámos ideias e discutimos os nossos casos. Dentro de mim coexistem vários eus, confessou-me, cada um em sua caixa fechada. Nunca sei quando se abre uma ou qual dos Gueron acorda maldisposto. A minha memória é prodigiosa e gosto de ler. Agora preparo-me para responder sobre o ano 2000 porque os ouvi a referir esse mas, se resolverem perguntar sobre o que não estiver estudado, liberto o Gueron que nunca fala e pode ser violento. Divirto-me à custa do que pensam e dizem mas o Gueron de hoje sabe que tenho de ficar aqui.É uma questão de segurança até para mim, disse. Nunca sei quando acordo guerreiro, disse gargalhando. A sua sorte, Ricardo, é você ser um pobre diabo, um homem simples. Se, no entanto, eu acabar por concluir o contrário, vai custar-me muito mas terei de lhe bater, faz parte do "cliché". Sou simples, garanti. Muito simples, repeti receoso, antes de me despedir dele para sempre.